Friedkin nunca teve freios em sua câmera. Seus filmes nunca foram considerados exatamente leves ou acessíveis. Muitos dos seus personagens provocaram revolta e polêmica no público – como Popeye Doyle, o policial racista e violento que atirava pelas costas em Operação França (The French Connection, 1971) ou mesmo Reagan, a pequena menina que, possuída pelo diabo, blasfemou em tela grande em O Exorcista (The Exorcist, 1973). Não satisfeito, anos depois de filmes de menor repercussão, mas de qualidade tão consistente quanto, vem mais um personagem antológico para sua carreira – e que dá inclusive o título para o filme: o absurdo assassino Joe Cooper, um detetive de polícia que, por 25 mil dólares, elimina sem rastros quem você quiser.
Mas claro que nada é tão simples no universo de Friedkin. Verdadeira pérola do humor negro, Killer Joe – Matador de Aluguel foi escrito originalmente para o teatro em 1993 e adaptado agora para o cinema por Tracy Letts, dramaturgo que já havia trabalhado antes com Friedkin em outra adaptação teatral sua, Possuídos (Bug, 2006), um dos trabalhos mais psicologicamente densos do diretor. O roteirista é adepto do “Southern Gothic”, corrente artística Americana que opta por trabalhar com personagens perturbados, situações grotescas e um mundo sem moral nenhuma.
Absurdo e despudorado, o mote de Killer Joe é rápido e fácil de ser explicado: Chris, um jovem traficante de cocaína metido em apuros por causa da sua mãe, chama Killer Joe para assassinar sua genitora. Com o consentimento de seu pai, da sua madrasta e sua irmã mais nova, Dottie, os três concordam em contratar Joe Cooper para dar cabo dela e receber um gordo montante do seguro de vida. Como eles não têm o dinheiro de imediato, Joe mantém Dottie como “garantia”, ameaçando levá-la caso o dinheiro não apareça.
E é isso aí: não há muita consciência ou pesar entre os personagens decadentes do universo de Friedkin e Letts. Ninguém é inocente e Joe surge como um verdadeiro “cobrador”, um anjo da morte ao mesmo tempo elegante e pervertido. Matthew McConaughey, bem longe do terreno da comédia romântica, encarna um personagem que se encaixaria perfeitamente nos quadrinhos de Garth Ennis: sofisticação e ímpeto homicida e libidinoso ocupando um só corpo, um mesmo porte: nunca saberemos do próximo movimento do personagem que surge para reparar as sandices dos outros personagens com sandices maiores ainda.
Afinal, nunca existiram personagens inocentes ou uma definição clara das forças antagonistas nos filmes de Friedkin. Chris, que logo se vê ameaçado por Killer Joe, é um alguém que, mesmo chocado com os métodos do assassino ainda é, em primeira instância, um jovem que esteve disposto em algum momento em trocar a vida da própria mãe e oferecer a irmã como garantia para saldar uma dívida. O tom misantropo é explícito: tal sorte de sentimentos ruins como traição, mentira, paranoia e oportunismo existem em cada um de nós. Nos filmes do diretor, mais ainda. Nesse filme, em específico, mais do que nunca.
Virando de cabeça para baixo os clichês típicos de um thriller, os autores do filme se esforçaram em criar uma comédia que desde o início já mostra uma família sem valores, sem união e com uma incapacidade gritante e grotesca de demonstrar afeto ou conseguir se comunicar que, com o passar do filme, será destruída e cobrada por seus erros. Tudo no filme é exagerado e caricatural além do limite comum aceitável, com um banho de sangue espirrando na cara do espectador praticamente a cada dez minutos; Friedkin não poupou nem na violência gráfica nem na nudez para compor a diegese do “riso nervoso”: um universo que se ri para não ficar apavorado, onde os indivíduos não passam de um amontoado de bolsas de sangue com vontade de transar com qualquer coisa que se mexa e passar perna em todos ao seu redor.
Um mestre da Nova Hollywood, o diretor prova que ainda é afiado: sua linguagem ainda é poderosa como nunca, sem freios e intensa. O trabalho com os atores é corroborado com uma composição de enquadramentos e uma montagem ritmada para que os planos vão aumentando em proximidade e intensidade psicológica: Joe é sempre filmado em contra-plongée, valorizando o porte físico assustador e chamativo. Os outros personagens, como Chris, seu pai Ansel e sua madrasta Sharla, são progressivamente esmagados pela câmera. Enquanto Joe domina cada plano que aparece, eles são engolidos e humilhados. Somos cúmplices com pessoas traiçoeiras e brutais e sentimos sua dor em planos cruelmente longos.
Friedkin esculpe o tempo em função dos baixos instintos como ninguém: ao mesmo tempo que há a sensação de pena, é praticamente impossível não rir da performance tão exagerada e tão composta de Matthew McConaughey e da sua brutalidade que, de tão desenfreada, acaba sendo a própria atmosfera do filme aos nossos olhos. Atente para o jogo de alturas de câmera e direcionamento de luz e olhar na cena do frango frito. Uma das grandes cenas do cinema de Friedkin, é impressionante o controle e a habilidade de pensar o impacto da imagem com o impacto do tempo: ele realmente sabe nos dar a certeza que a dor e a humilhação não vão acabar tão cedo e que, uma vez que se retire a tampa do esgoto, dificilmente os dejetos da família WASP americana, seu lado feio e monstruoso, pararão de sair.
Mas é claro, não é o riso escatológico, imbecil e vazio tanto proposto na nossa geração; Friedkin se agarra firme ao horror humano de seus maiores clássicos, do anacronismo e obstinação de Al Pacino em Parceiros da Noite (Cruising, 1980) e de William Petersen em Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., 1985) para fazer uma comédia propositadamente chocante em sua encenação over-the-top para, é claro, denunciar o inferno urbano podre que sempre foi uma constante em seus filmes.
Joe Cooper é como se fosse o reflexo de um espelho quebrado de Popeye Doyle; como o personagem de Gene Hackman já não era por si um indivíduo íntegro, mas um homem que passaria por cima de qualquer impedimento legal para conseguir o que queria, Cooper é uma negação maior ainda dos valores tradicionais: ele realmente vai passar por cima de tudo para conseguir o que quer. Ele é um detetive de polícia, mas a lei para ele é uma piada. Tudo o que importa no final, é o troféu, a virgenzinha inocente Dottie. A prova viva que Killer Joe Cooper trouxe à tona, para a luz do cinema, o show de freaks degenerados e desbocados que vivem escondidos. Ele não os corrompe – ele os revela.
A câmera de Friedkin é uma metralhadora giratória que não deixa pedra sobre pedra. Aqui, de novo, ele conseguiu compor uma obra tão característica que nós dá a certeza que só ele saberia trabalhar com um material assim. Um filme literalmente escroto, em um excelente sentido.
Visto no 14º Festival do Rio
Ótima crítica! Grande filme, repleto de humor negro em um universo falido moralmente. Cabe apontar as ótimas escolhas de composição de cena, mais especificamente ao azul, cor que representa Joe Cooper, assim o azul é parte da imersão dos personagens perante ao assassino. A todo momento o azul envolve os personagens,(POSSÍVEL SPOILER) e os \"engole\" de vez na derradeira cena final (frango em cima de um lenço azul), onde o vermelho começa a compor a cena (ex: latinhas azuis na mesa da cozinha, enquanto uma vermelha é servida à Sharla; cortinas vermelhas em volta da cortina azul, entre outras durante todo o filme).
Filmaço-aço-aço... Muito bom ver que ainda é possível fazer cinema de verdade, mesmo que vestido de pseudo comédia para conseguir estilizar seus personagens sem soar estranho ao público atual. Está entre os grande filmes da filmografia desse mestre do cinema, e também entre os grandes filmes da década!
Nossa, que final lindão é aquele, heim? A cena do frango frito é para fazer rezar aos céus que William Friedkin continue a fazer filmes.
Acho que fui a única pessoa no mundo que não achou nada demais nesse filme. Até curto algumas coisas do Friedkin ("Operação França" é sensacional), mas "Killer Joe", na minha modesta opinião, tem muita maquiagem e pouco conteúdo e roteiro.