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Críticas

Cineplayers

Uma ótima homenagem aos filmes que Tarantino assistia na época em que era um rato de locadora.

9,0

Seis longos anos se passaram desde que Tarantino lançara seu último filme, Jackie Brown. Desde então, muita gente o acusou de várias e várias coisas, inclusive de bloqueio criativo, mas a verdade é que Tarantino nunca erra no tempo. A demora só ocorreu por uma combinação de fatores que nos deixaram de herança essa longa espera. A idéia de Kill Bill surgiu dez anos antes, quando Tarantino ainda filmava sua obra-prima Pulp Fiction: Tempo de Violência, e teve forte influência de sua estrela Uma Thurman. Entre uma tomada e outra, os dois sentavam e começaram a discutir a idéia de uma mulher que participava de um grupo de assassinos que decide largar essa vida do crime. No dia de seu casamento, os ex-companheiros aparecem e transformam a festa em uma verdadeira chacina. Sobrevivendo milagrosamente ao ataque, ela decide então buscar a sua vingança, um por um.

Tarantino sentou uma noite e escreveu direto vinte páginas sobre o assunto, mas depois deixou tudo largado dentro da gaveta. Passa-se Pulp Fiction, passa-se Jackie Brown e, enquanto ele preparava o seu filme de guerra, encontrou despretensiosamente Uma. Foi o suficiente para ele voltar aos manuscritos de sua gaveta e ver que aquilo realmente poderia funcionar, que era engraçado para caramba! Se a demora normal para a produção de um filme não bastasse, Tarantino ainda teve complicações que atrasaram sua obra, como por exemplo a gravidez de Uma. A vontade de Tarantino produzir novamente o mais rápido possível quase o fez com que substituísse sua musa do papel principal. Ainda bem que ele retomou a consciência e não fez isso, esperando que Uma pudesse novamente voltar à ativa para que ele começasse a obra. Só nesse caso, já se foram mais dois anos de produção, o que explica tanto tempo sem Tarantino.

Claro que a história não parece ser uma das mais atrativas, afinal, quantos e quantos filmes de vingança existem pelo mundo? Só não podemos esquecer que estamos falando de ninguém menos que Tarantino. A primeira imagem de Uma já define bem o conceito do que seus filmes são: a noiva, jogada no chão, toda ensangüentada, implorando pela vida diante de Bill. A propósito, a idéia dessa abertura foi de Uma, só que tudo o que vem a seguir fica bem claro que estamos vendo um filme de Tarantino. Não só pela montagem, novamente não linear, brincando de ir e vir nos fatos da história, como também nas inúmeras referências pop que ele inclui em seus filmes.

Há uma diferença básica na construção diante de seus filmes anteriores, o que pode deixar alguns insatisfeitos. Saem os diálogos extremamente inteligentes e dão lugar a cenas e mais cenas de lutas, com muito, mas muito sangue! A estrutura é basicamente a mesma, só que com essa alteração de foco, justamente o que fora alvo de reclamação de algumas pessoas. Não me incomodou, principalmente porque essas cenas de ação são muito bem dirigidas, quase não utilizam efeitos especiais para serem realizadas (o computador só entra para apagar alguns cabos que seguram os atores) e tudo é muito divertido e bem montado. Nesse ponto, não poderíamos esperar menos de Tarantino. Alguns também reclamaram da violência, mas sinceramente, em que lugar do mundo você corta o braço de alguém e de suas veias jorram sangue como se um hidrante houvesse sido aberto? É claro que Tarantino criou o seu mundo nesse filme, e tudo o que acontece é fantástico e inverossímil. É o seu jeito de se divertir. É a sua realidade.

Tarantino soube como ninguém também rechear o seu bolo. Ele pega nada mais nada menos do que inúmeras referências e joga tudo num liquidificador, e o resultado é muito positivo. Imagine diversas referências aos westerns de Sérgio Leone (como o super close constante nos olhos dos personagens ou a cena em que descobrem a chacina na igreja), os filmes de samurai realizados nos anos 70 (o sangue que jorra como chafariz saiu de Lady Snowblood), o terror italiano (conhecido como giallo italiano, usado na criação do clima), os seriados de televisão que ele assistia (a máscara dos capangas de O-Ren Ishi, a personagem de Lucy Liu, vieram do seriado Besouro Verde). Listar todas as referências não seria só um desafio enorme, como também tiraria muito da graça de Kill Bill. Assim como Cães de Aluguel e Pulp Fiction usavam a cultura pop para enriquecer sua obra, Kill Bill utiliza suas referências em uma reciclagem para a criação de algo novo. Não adiciona, cria.

Claro que a história contada de modo não linear também está presente. As idas e vindas na história já geraram uma certa dose de desconfiança por alguns críticos, que ao contrário de Cães de Aluguel e Pulp Fiction, acusam de não mudar em nada o aspecto da história que está sendo contada. Isso é verdade, afinal, se Kill Bill fosse contado na ordem que as coisas realmente acontecem, seria exatamente a mesma coisa, não mudaria a nossa visão sobre os acontecimentos. Eles acusam que o filme coloca primeiro A Noiva (como Uma é conhecida, nunca tem seu nome revelado) matando Black Mamba primeiro por a batalha ter sido menor, sendo que ela era a segunda da lista. Por que não colocá-la em primeiro na lista para depois partir para a personagem de Lucy Liu, já que esta é infinitamente mais complicada de ser eliminada do que a dona de casa que ela deixou para matar em segundo lugar? A resposta é muito simples, e se encontra dentro do próprio filme. Só leia se já tiver visto o filme, senão passe para o parágrafo seguinte, pulando a resposta da pergunta que eu acabei de fazer.

Logicamente seria mais fácil ir direto na Black Mamba do que na O-Ren, já que uma é dona de casa e a outra a líder da Yakuza. Só que, em certo momento, fica claro que A Noiva simplesmente não sabe onde estão os outros integrantes do grupo, a única que ela tinha conhecimento era O-Ren, já que ela é super famosa por sua posição dentro da máfia japonesa. Depois de descobrir seu paradeiro, A Noiva parte para as mais fáceis, já que agora ela sabe onde está cada um. Tarantino logicamente inverteu a ordem dos acontecimentos justamente porque a batalha com O-Ren era muito mais interessante do que com a de Black Mamba. Ele não fez isso só por ser Tarantino, como muitos acusaram, e sim pela lógica e tensão gerada pelos combates. Ficaram então, para o segundo filme, Elle Driver (Daryl Hannah, a enfermeira), Budd (Michael Madsen, em mais uma inspiração western) e, claro, Bill (David Carradine).

A divisão do filme em duas partes, ao meu ver, foi acertada. Muito do filme seria desperdiçado caso ele tivesse de ser picotado para caber em pouco mais de duas horas, ao contrário das três que os dois filmes somam. Lógico, Tarantino foi acusado de ser mercenário, estar se aproveitando para ganhar mais, mas a verdade é que ele nunca ligou para super bilheterias. Apenas queria o seu filme ao seu gosto, e é essa a liberdade que ele tem dentro da Miramax. Ou cortaria muito do filme, ou lançaria em duas versões, já que três horas de gente se picotando ficaria chato e anti-comercial, segundo alguns executivos da Miramax. Para não deixar sua obra a mercê da indústria, Tarantino fez a escolha correta. A genial seqüência de anime, que funciona como a introdução da personagem O-Ren Ishi, por exemplo, teria de ser picotada pela metade. Lógico que a Miramax vai encher ainda mais os cofres com edições duplas, conjuntas e tudo mais em cima dos DVD’s de Kill Bill, mas isso é um problema com a produtora, e não com a qualidade inquestionável de Tarantino.

As músicas confirmam sua importância dentro da história e fazem uma perfeita combinação com as imagens. De vez em quando, parece até que Tarantino escreve as cenas de acordo com as músicas que pretende ter em seu filme. O desenho de som (que são os sons inseridos na pós produção, não são os captados na hora da filmagem) é fantástico e também representa os seriados antigos que o diretor assistia. Sons de espada, socos, lâmina rasgando o ar, está tudo lá, no melhor estilo filme de samurai de antigamente. O tema pode não ser tão forte quanto o de Pulp Fiction e sua música “Girl, You’ll Be a Woman Soon”, mas é muito viciante e marcante, com Nancy Sinatra e seu “Bang Bang”. O responsável pela parte sonora do filme foi RZA, e ele conseguiu dar uma variedade incrível nas canções, desde rap até música clássica do cinema, com Bernard Herrmann (o eterno xodó do gênio Hitchcock; a seqüência do assobio é dele). Muito dessa combinação foi facilitada pelo fato de ambos, tanto RZA quanto Tarantino, serem fanáticos pelos mesmos programas, mesma época, tudo. Eles até brincam, pois RZA chegou para Tarantino e falou: “ah, eu tenho a cópia pirata rara desse filme”, e como resposta, ouviu: “é, legal, eu tenho o 35 original”. Não havia como essa dupla não dar certo.

A direção também é precisa e excelente. O clássico plano de porta-malas está presente, e um complicadíssimo plano seqüência que começa embaixo de uma escada, acompanha a personagem, passa para cima do cenário (vendo tudo por cima) e então fecha na personagem de novo são exemplos de como esse filme é tecnicamente perfeito. O timming que ele tem de suas cenas é algo anormal. A direção também faz referência à tudo já citado, como por exemplo a seqüência em que tudo fica em preto e branco – recurso usado antigamente para deixar o filme mais leve e que ele pudesse ser aceito pela censura americana – e uma bela luta em silhueta de fundo azul (que me lembrou o vídeo clipe Champagne Supernova, da minha banda preferida Oasis, mas lógico que não foi essa a referência de Tarantino). Apesar dos longos diálogos não estarem presentes, ainda há diversas frases engraçadas e inteligentes, como por exemplo “Era mesmo uma Hattori Hanzo”. Não direi quem disse a frase e nem em qual situação para ela não perder o impacto de quem ainda não viu o filme.

A fotografia e a direção de arte contribuem para a teoria de que tudo é um mundo imaginário, tanto pelas luzes estouradas quanto as cores utilizadas. O grande mérito é que, apesar disso, o filme nunca parece falso ou não aceitável, você sempre crê em tudo o que está acontecendo na tela. Há também as cenas claramente artificiais, como quando A Noiva está chegando no Japão e vemos o avião voando. Recurso parecido já havia sido utilizado por Tarantino na cena em que o personagem de Bruce Willis foge de seu ex-chefe em um táxi, em Pulp Fiction.

A personagem de Uma Thurman é extremamente interessante. Apesar de Tarantino deixar os seus personagens o mais simples possíveis (sabemos tudo sobre eles), ela consegue ter carisma mesmo sendo uma ex-assassina. Ele consegue a proeza de nos fazer simpatizar pela Noiva, mesmo ela sendo uma ex-integrante daquele grupo de assassinos! Ou seja, assistindo ao filme, ele consegue nos fazer esquecer que ela também já matou várias pessoas e foi tão sanguinária quanto seus ex-companheiros. Fisicamente Uma também não decepciona, conseguindo convencer nas cenas de combate em que é exigida, sem ter aquele ar de artificialidade que algumas atrizes não conseguem esconder quando assumem esse tipo de papel. O resto do elenco também está muito bem, com algumas figuras ressurgidas (Daryl Hannah) e outras de muito sucesso (Lucy Liu), mas sem nunca um ator sobressair ao outro, exceto Uma, que está fabulosa no papel e muito convincente.

Ao final de Kill Bill, tive a certeza de assistir um filmaço, bem ao estilo do diretor. O humor negro, as situações estranhas encaradas de modo super normal, a violência, a montagem não cronológica, o apelo pop, tudo. Pretensioso? Sem dúvidas, afinal, como não afirmar isso sendo que o próprio cartaz do filme continha a frase “O quarto filme de Tarantino”. Pelo menos, ele não decepciona as expectativas criadas e nos dá uma hora e quarenta do melhor entretenimento fantástico que o cinema pode criar. Conhecendo algumas das referências então, tudo fica melhor, mais profundo e prazeroso. Uma dica: adquira a trilha sonora o quanto antes, você não irá se arrepender.

Comentários (3)

Bruno Kühl | sábado, 27 de Agosto de 2011 - 18:30

Uma das melhores críticas do Cunha para um dos melhores filmes já feitos e o melhor do Tarantino! Melhor, melhor, melhor! 😋

Cristian Oliveira Bruno | quinta-feira, 28 de Novembro de 2013 - 17:49

Não tem como não se divertir com a violência cult de Tarantino:
\"Era mesmo uma Hattori Hanzo.....\"

Francisco Bandeira | quarta-feira, 23 de Abril de 2014 - 08:59

Esse aqui influenciou pouco Kill Bill:

http://www.cineplayers.com/filme/sexo-e-furia/13449

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