O plano que abre o novo longa de Wagner de Assis, uma reunião onde se observa o erguer-se de uma mesa, define os sentimentos que percorrerão por toda a duração do projeto, acalentado desde o sucesso de Nosso Lar, que segue sua trajetória pelo viés espírita na nossa cinematografia, que teve um auge no início da década e agora parece se preparar para voltar. Há uma expectativa clara no rosto de cada um dos atores em cena, ansiosos por respostas diante do desconhecido, ao acompanhar o surgimento de um fenômeno na França no período retratado no filme (correndo entre 1852 e 1860), no qual se desenvolveria o espiritismo; também o espectador terá sua credulidade testada, ao confrontar as insuspeitas qualidades do filme, suficientes para encarar a sessão sem reservas, diante da seriedade sem firulas e da correção aplicada no material.
Baseado no livro biográfico de Marcel Souto Maior, Assis direção e roteiro tentando provar uma evolução ao seu projeto anterior (o indefensável A Menina Índigo) e se estabelecer sem desconfiança no mercado, que nunca viu suas atividades com apreço. Se não temos um cineasta renovado, ao menos fica claro seu empenho em dosar arroubos melodramáticos. A principal qualidade de Kardec é tratar seu biografado com respeito e sem histeria, mantendo uma atmosfera até um pouco sisuda em determinado momento, mas que se justifica ao tentar equilibrar qualquer possível passagem exagerada - que, a bem da verdade, não estão aqui. O filme centra sua narrativa no período mais saboroso dramaturgicamente da vida de Hippolyte Leon Denizard Rivail, educador que entra em choque com a Igreja quando a mesma passa a pressionar os liceus franceses com a sua presença. No mesmo período, o país era assolado por espetáculos de "mesas flutuantes", que mostravam ao seu público um primeiro contato com o universo espírita, do qual Rivail a princípio ironiza, mas que aos poucos o dobra a ponto de fazê-lo codificar a doutrina para o mundo, ao publicar um dos livros mais vendidos nos últimos 150 anos, O Livro dos Espíritos.
Quando Assis transformou a obra maior do medium (e seguidor de Allan) Chico Xavier em um dos maiores sucessos da década, parecia óbvio que repetisse a experiência bem sucedida. O mais surpreendente é observar a postura que o diretor assume dessa vez, sem possibilidades sensacionalistas ou tinta forte. Sua mão assustadoramente firme conduz os acontecimentos com segurança, sem recorrer a um excesso de diálogos lacrimosos e/ou bregas (entenda, eles até existem, mas em número bem menor do que anteriormente visto sair de sua lavra) e com didatismo igualmente controlado. Ainda assim trata-se de uma biografia - ainda que com escopo temporal reduzido, representando outro acerto - e isso necessariamente significa que só grandes nomes conseguem vencer as armadilhas do gênero; Assis se sai como pode, expondo um embate entre fé e ciência que não é realçado de maneira mais eficaz, mas que está apresentado para o debate.
O acerto de Assis se desdobrou até o tom imagético do filme, também adequadamente introspectivo. A direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto e Helcio Pugliesi compõe a ambientação ideal, no que pesem seu período histórico e sua carga emocional, de tons sóbrios; repletos de detalhes e minúcias, cada cenário do filme é um universo a desbravar. As veteranas Kika Lopes e Rô Nascimento não fizeram por menos e se empenham em figurinos de igual qualidade, dando ao longa inegável beleza estética. Outro veterano que volta a entregar um belo trabalho é Nonato Estrela, que já tinha assinado a foto de 'Chico Xavier', e aqui encontra uma luz que varia entre o cinza dos exteriores e o marrom dos interiores, traduzindo as inquietações e angústias do homem que viria a se tornar Allan Kardec. Ou seja, o arco dos acertos da direção não são poucos, mas ainda que faltem cenas marcantes, o filme se encarrega de cercar-se da adequação em proposta como um todo.
O elenco também segue os padrões de interiorização, que acaba por estabelecer mais uma harmonia constante, ainda que esbarre vez por outra em falta de obstáculos. O brilho maior do grupo obviamente fica nas mãos de Leonardo Medeiros, completamente integrado ao seu personagem-título, em composição que provavelmente guiou muito das decisões coletivas. Seu Kardec passa pela transformação necessária para chegar ao homem que conhecemos, e a dignidade empregada pelo ator está em cena desde seu primeiro momento. Tanto Sandra Corveloni quanto Genesio de Barros fazem excelente dobradinha com ele, mas sua confiança, sua harmonia de gestos e exposição, sua força delicada expressam por si só o carisma de uma figura definitiva dentro da religião; Leonardo completa as lacunas onde o alcance de Assis se mostra insuficiente. Com um diretor maduro, o ator levaria Allan Kardec a um patamar inesquecível no cinema.
Boa crítica, Pegou aspectos importantes. Problema da obra é ter sido baseado num autor não espírita que produziu uma obra eivada de erros e a direção de um indivíduo que não conhece nada do que ia retratar. Dai o tom comedido de tudo. Kardec não era cético e não era religioso. Não criou uma religião. Elenco afinado, sobretudo Leonardo Medeiros. Pena que o roteiro seja tão insosso. Kardec foi um revolucionário e não merecia uma hagiografia capenga dessas.