Depois da entusiasmada recepção que Mistérios da Carne (Mysterious Skin, 2004) teve entre os cinéfilos brasileiros, cada novo trabalho de Gregg Araki sofrerá com a necessidade de corresponder às diferentes expectativas de quem conheceu o diretor californiano através daquele título, ignorando-se talvez que a filmografia inteira desse cineasta, que já ultrapassou os cinqüenta anos de idade (e com onze trabalhos de direção), costuma ser tida como bastante irregular por grande parte da crítica. O próprio Mistérios da Carne é um filme que pode não agradar a todos: particularmente, considero que se tivesse começado a assisti-lo num canal de TV sem ter visto o seu prólogo poderia ter me interessado mais pelos diversos signos de que ele se cerca, porém a cena de abertura com o abuso do protagonista quando garoto pelo namorado da mãe (um treinador de beisebol de dentes brilhantes e bigode aparado pelo qual o moleque sentia atração), e a nostalgia com que o personagem relembra esse episódio, foi suficiente para que me afastasse do filme, mesmo sabendo o que poderia ter de comentário crítico e de reflexão amarga nele como um todo, mas me fazendo perder o interesse e o foco em muitas das questões que se desenrolariam dali em diante.
De certa forma, pode-se preferir Kaboom (idem, 2010), até agora o mais recente trabalho assinado por Araki, e considerá-lo de uma inventividade maior por seu trabalho de desconstrução de gêneros, ainda que muitos possam apontar nele certas incongruências. Não é raro ver Kaboom ser descartado como uma bobagem, porém certas críticas negativas que fazem a ele parecem esquecer que o filme é uma mistura de sci-fic com comédia juvenil, o que justifica ele deixar de lado todo o realismo que as suas cenas iniciais pareciam sugerir.
O tema da paranoia é relativamente freqüente em muito da melhor literatura contemporânea, no entanto no cinema raramente ela costuma ser bem empregada, ou então aceita sem reservas pelo público, pelo que o tema por si só carrega de absurdo e fantasioso (afinal, são pirações que podem estar ocorrendo na realidade ou apenas na mente dos personagens, e materializar isso em imagens num filme pode afastar ou desagradar a muitos). Não se trata de uma forma de poupá-lo por sua condição, mas de fato Kaboom é muito eficiente no sentido de ser divertido mesmo. Uma ficção apocalíptica que começa como um filme de universidade, uma espécie de Albergue Espanhol (L'Auberge Espagnole, 2002) não-sentimental e menos amorfo, e próximo de uma temática sexual (homo e hétero) frequente na filmografia de Araki. Em termos eróticos é um dos filmes mais libidinosos do seu cineasta, pela variada gama de personagens que o cerca, tendo como núcleo Smith, o heroi de dezoito anos que gosta de rapazes (especialmente seu companheiro de quarto bobalhão − um surfista chamado Thor −, e um sujeito que conhece na praia de nudismo), mas que também se envolve com garotas, e sua melhor amiga Stella, que depois de um tempo passa a fugir de sua namorada ninfomaníaca e insaciável.
Como todo bom filme juvenil, seus personagens frequentam festas regadas a álcool, drogas e sexo. Numa dessas ocasiões, Smith experimenta biscoitos alucinógenos, e Kaboom passa a misturar tramas de perseguição e de mistério, num clima entre o nonsense e o filme de terror, em torno de uma conspiração apocalíptica perpetrada por uma espécie de seita misteriosa chamada New Order. Smith tenta ajudar uma ruiva que encontra passando mal no jardim, porém desmaia e acorda horas mais tarde com um pen drive por perto contendo um vídeo que desencadeia todas as intrigas da trama.
O universo de Kaboom é permeado de sonhos, bizarrias, bruxarias, Bíblia sagrada, vodus, códigos obscuros e homens usando mascaras de animais, todo ele centrado, mais que sua falta de lógica, numa questão de imaginário e adolescência (ou pós-adolescência). Os excessos de cores em sua decoração insinua um contexto futurista, ainda que permanecendo sempre mais próximo de nossa época do que de um futuro distante. É possível aproximá-lo de obras como a dos títulos assinados por Richard Kelly, ou a outros filmes à la David Lynch. Mas citando também o cinema de um tempo passado, com os fragmentos clássicos de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929), do qual compartilha o gosto pelo surreal, porém tecendo um comentário de que o cinema talvez não exista mais amanhã como o conhecemos no passado. É só mais uma faceta da visão do fim do mundo que Kaboom pretende compartilhar.
Quero ver os antigos dele, Mistérios da Carne é obra-prima.
Muito bom esse filme.