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Críticas

Cineplayers

Uma mulher sob (forte) influência.

9,5
Paula está agitada. Ela bate na porta, ela esmurra, ela grita, ela chora, ela xinga, bate com a cabeça. Mais de uma vez, e de propósito. Desmaia. Acorda então num hospital, medicada, onde é examinada por um psicólogo de plantão. O que Paula queria naquela porta? Entrar. O apartamento do ex-namorado é a primeira de muitas portas fechadas que ela terá ao longo de Jovem Mulher, longa de estreia de Léonor Serraille, Camera D'Or no Festival de Cannes desse ano - com justiça. O filme chega num momento crucial da mulher moderna, onde o cinema as entende dotadas da complexidade que outrora foi negada às personagens femininas, e que hoje não pode nem é mais postergada ou mitigada. Independente da enorme relevância comportamental, Jovem Mulher é um estudo de personagem, dentro da linguagem cinematográfica. É na verdade 'O Estudo', talvez o maior momento de 2017 nessa área.

Observando e bebendo a fonte inesgotável que John Cassavetes deu ao mundo, o vigoroso e explosivo mergulho de Serraille é uma estreia impressionante sob qualquer aspecto. Filmando de maneira impactante, é uma espécie de desabafo sobre o desamor próprio e os descaminhos de desconstrução e reconstrução mental. A cineasta francesa cola sua câmera rente a Paula, uma jovem mulher que literalmente já viveu de um tudo. Febril como sua protagonista, a narrativa segue o ritmo ágil imprimido pela dupla, criadora e criatura, que não dá descanso ao espectador e instiga com suas elipses e seu gradativo descortinamento das ações e reações, do passado recente e do presente imediato, um caleidoscópio imprevisível em pleno movimento. As respostas sobre quem é essa jovem mulher e porque ela se encontra no momento frágil atual vem como em peças de um quebra-cabeça afetivo e emocional, que recria aos poucos o furacão Paula, que como todo fenômeno climático provoca destruição por onde passa; no caso dela, a destruição também é interna.

Se a estrutura do roteiro, também de autoria de Serraille, não é inovadora nem tem sacadas originais, a qualidade do todo vem da carpintaria com a qual se constrói a narrativa. O desenho de Paula é muito refinado e crível, uma personagem que é a síntese da idiossincrasia, tendo um manancial delas. Mulher repleta de desilusões desde o entrecho familiar até o convívio social, extremamente difícil sempre, Paula é uma pessoa que afasta muito mais do que aproxima. Geniosa, aparentemente em constante desequilíbrio e numa eterna corda bamba sobre a perda da razão, o filme até acompanha sua anti-heroina por passagens mais suaves, mas acabamos criando uma espécie de arquitetura do desconforto diante de sua imprevisibilidade emocional. Carente, Paula é um ser humano que passeia por rabiscos dos Coen, de Woody Allen, mas que é abençoada pelo já citado Cassavetes, e acaba emergindo desse grupo de referências como alguém possível e extremamente humano, além de fresco. Pontos para sua idealizadora, mas nunca só ela.

Extremamente centrado, talvez o filme nem precisasse ter um elenco tão incrível, mas tem. Lógico que tudo seria em vão se Laetitia Dosch não estivesse no auge de sua capacidade. Atriz praticamente novata, com currículo cinematográfico curto, Dosch deveria facilmente ganhar todos os prêmios do ano em qualquer país, de língua francesa ou não. Sua entrega em cena deveria ser militricamente analisada em cursos de atuação e invejada por seus colegas. O tanto que é uma personagem fascinante, é o equivalente a ela entregar uma atuação simplesmente inesquecível. Paula é um missel sem rumo, que eventualmente explode nos lugares e nas ocasiões menos apropriadas, e o trabalho conjunto de Serraille e Dosch é primordial para o efeito pretendido, e alcançado. E dramaturgicamente, que ela seja criada do avesso de como qualquer um trataria, é um presente do filme para o espectador e para a própria Dosch, que mostra um ser humano real de fora pra dentro. Vísceras expostas, diretora e atriz tratam de gradativamente radiografar o interior fraturado de uma mulher cujo maior traço de modernidade talvez seja não medir as consequências, para os acertos e para os erros.

Numa temporada de filmes marcado por grandes temas perpassando a vida até comum das pessoas comuns assoladas pelo extraordinário, Jovem Mulher pega carona na delicadeza de Paterson e Manchester a Beira-Mar para emoldurar uma alma fraturada pelos anos e em processo de reconstrução compulsória. A partir da chegada de determinado personagem vivido por Grégoire Monsaingeon e da relação muito destrutiva entre ele e Dosch, o filme observa então um processo de descoberta do feminismo que provavelmente Paula nem tinha criado em si, e que o faz da maneira mais natural e menos didática possível. Com um trabalho de montagem primoroso que define desde o frenético ritmo da vida absolutamente frugal de Paula até a necessária placidez que ela precisa adquirir para compor sua sanidade, Jovem Mulher é um daqueles belos casos onde uma narrativa muito focada precisa de inúmeros profissionais para dar eixo a algo muito íntimo e pessoal, e como numa espécie de reflexo irônico, o brilhantismo de sua atriz principal faz todos os elementos centrar holofotes de volta nela mesma.

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