Alegoria do fim do mundo — ou do início de um novo
Taika Waititi é um artista subversivo. E a subversão é uma característica dos grandes autores. O cineasta neozelandês já desfilou essas duas qualidades na subestimada paródia dos filmes de vampiros O Que Fazemos nas Sombras (What We Do in the Shadows, 2014) e na ousada e também incompreendida releitura de Thor: Ragnarok (2017) — filme que colore o universo e a personalidade do deus nórdico Vingador sem (ao contrário do que os fãs radicais alegaram) desonrar sua mitologia e com muito mais desenvoltura que os comportados filmes anteriores, arrancando o melhor de Chris Hemsworth ao explorar sua veia cômica e realizando um longa-metragem mais coeso em si e em relação ao Universo Cinematográfico Marvel. Golaço! De um diretor e roteirista cuja zona de conforto é a rebeldia e seu campo de atuação preferencial, a fantasia.
Por isso, nenhum outro artista receberia um voto de confiança tão grande — da indústria, do público, da imprensa, geral! — ao surgir com um projeto tão espinhoso quanto uma sátira sobre a Segunda Guerra Mundial, o Nazismo e Adolf Hitler. Ainda assim, é espantoso o que Taika Waititi consegue extrair de Jojo Rabbit (2019). Sem incorrer nas diversas armadilhas possíveis de seu argumento audacioso, como o melodrama cafona e a paródia de mau gosto. Assim, dentre as muitas referências visuais, temáticas e estruturais que o filme evoca, a que mais chama atenção é O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940). Justamente por ironizar de forma lúdica e "responsável" o horror da guerra, fazendo comédia a partir da visão de mundo absurda do opressor. O outro predicado de Waititi que faz jus ao clássico de Charlie Chaplin é a extrema habilidade de articular essas gags de uma forma cinematograficamente impecável.
O ponto de partida dessa história fantástica é Johannes Betzler, "Jojo", um menino alemão tão fissurado pelo Reich que seu melhor amigo é um Hitler imaginário. Como diz sua própria mãe, a bondosa Rosie numa tirada hilária, a pouca idade não o absolve de tamanha obsessão — para ser assim, ele não deve bater muito bem da cabeça mesmo. A crítica é direta e clara, e o filme não cansa de enfatizar a posição de seu autor a respeito de quem defende regimes e líderes autoritários. Sempre por meio de piadas que debocham do poder de cognição de quem acredita na própria superioridade racial, que sublinham o raciocínio doentio de quem vê num semelhante diferenças tão absurdas quanto chifres e presas. E essas gags sempre funcionam, porque bem escritas e interpretadas.
Isso passa por um elenco que justifica sua indicação ao Screen Actors Guild (SAG). Embora o próprio Taika Waititi chamasse mais atenção nos trailers, e esteja de fato ótimo no papel, não lhe resta tanta oportunidade de surpreender ao longo do filme como a outros atores. Ademais, seu mérito maior não é como intérprete de uma versão caricatural do Hitler, mas em sua inteligência como escritor de comédia e drama, ao criar um personagem que expressa para o público as ideias e fantasias do protagonista e, conforme o filme avança e sua visão de mundo se expande, a sua confusão mental. Esse procedimento lembra muito a animação Divertida Mente (Inside Out, 2015), que usa um pequeno conjunto de cinco sentimentos básicos de uma criança para expressar um modo de pensar complexo, e que assim evolui até se transformar em uma mente mais desenvolvida. A dinâmica entre Jojo e seu Hitler imaginário ecoa essa mesma lógica, principalmente por se desenrolar numa chave cômica infantil à superfície e trazer logo abaixo um subtexto dramático inteligente do ponto de vista psicológico.
Para isso, o diretor conta com a atuação espetacular do ator-mirim Roman Griffin Davis. O garoto é um fenômeno: sem perder o jeito de moleque, ele diz as maiores atrocidades com verdade e ingenuidade, e hesita, sorri, se arrepende, sente medo, chora, mudando de expressão com uma facilidade incrível, com a verossimilhança que o papel pede e a falta dela nos muitos momentos em que a exigência muda — vide seus olhares eventuais para a câmera. Scarlett Johansson vive uma das personagens mais solares do cinema recente, e consegue retribuir cada set piece que tem para si (várias delas são como curtas de Rosie como protagonista) transmitindo essa luz irradiante toda vez que está em cena. Reinventado em Hollywood, Sam Rockwell ganha o privilégio de viver o Capitão Klezendorf, uma caricatura que vai revelando suas camadas ao longo do filme — em dois momentos pontuais, e bem distintos, ele transmite com o olhar as diferentes sensações reprimidas de um personagem que não acredita no que é e no que faz. Quando precisa mostrar sua verve humorística, o ator vencedor do Oscar por Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, 2017) também capricha e não deve nada a Rebel Wilson (que só interpreta sua versão nazista — e não precisa de nada mais para entregar o que precisa), Stephen Merchant (deem mais papéis para esse homem!) e Alfie Allen, que se liberta da sisudez do Theon de Game of Thrones (2011—2019) para viver um homossexual nazista bem afeminado (o que deve incomodar parte do público). Por fim, vale dizer que Roman Griffin Davids só perde para Archie Yates (Yorki) como o moleque mais fofo não só do filme, como do ano.
À exceção de Thomasin McKenzie (Elsa), que interpreta uma personagem mais séria e desde sempre trágica, esse elenco inspirado e seus personagens se portam em Jojo Rabbit como figuras particulares do universo criado por Taika Waititi. Esse universo é tão calculado, colorido, juvenil e dinâmico quanto o de Wes Anderson, especialmente em Moonrise Kingdom (2012). A estética singular de um longo plano aberto que posiciona Jojo e Rosie no canto inferior esquerdo da tela acessa diretamente O Show de Truman (The Truman Show, 1999), e seus significados de fato se chocam. Até que Jojo Rabbit vira A Vida é Bela (La Vita è Bella, 1997), e o filme se rompe e se transforma. Até que o sol se põe em pleno dia, e a única cor restante é de uma linda borboleta. Que guia Jojo rumo a um doloroso despertar. O wake up call do garoto é encenado com um lirismo ao mesmo tempo deslumbrante e devastador. A bem da verdade, todo o longa-metragem se caracteriza por essa pulsação cena a cena — seja para arrancar risadas, seja evocando o afeto dos personagens na tela, seja até estimulando umas lágrimas — que nem precisam escorrer para gerar a mais profunda emoção no espectador, inclusive de admiração pelo esmero como essa história é contada.
O grande mérito de Taika Waititi é assinar mais que um texto polemista, como o grupo Porta dos Fundos fez recentemente e provocou mais defesas à sua liberdade de expressão do que à qualidade da obra em si. O videoclipe e o ritmo alucinado que iniciam Jojo Rabbit são provas disso; a mudança da cadência do tempo denota o início do processo de amadurecimento do protagonista; o bonito jogo de espelhos entre Jojo e Elsa e a virada que isso representa narrativamente mostram o seu talento estético; as cenas de guerra do filme, uma versatilidade que causa tanto assombro quanto a expressão no rosto de Roman Griffin Davis, que se esconde dos tiros e bombas como um ratinho e agiganta a sequência visual e metaforicamente; o final é meticuloso do figurino à escolha de um clássico do Rock para entoar esse desfecho, numa rima com a abertura; e até uma citação a um poeta, em vez de óbvia, amplia a obra do autor.
Jojo Rabbit é vários filmes em um, e como um só, um afago de Taika Waititi em todos aqueles que sofrem algum tipo de autoritarismo. "A beleza e o horror fazem parte de nossas vidas, não se abale, sigamos em frente, sejamos felizes". O recado vai por aí, com seu longa-metragem servindo como uma ferramenta de catarse, como um presente para essas pessoas, para todos nós. E os mesmos curtos versos de Rainer Maria Rilke que expressam essa ideia portam uma ambiguidade genial, direcionável ao opressor. Dado o contexto, do filme e de seu realizador subversivo, o poema soa também como uma nota de esperança a versar sobre a possibilidade de se descobrir e lapidar outros Jojos mundo afora — o que enriquece o amor incondicional, educativo, dispensado por Rosie ao filho nazista nos momentos em que o menino mais destila ódio. "Nenhum sentimento é definitivo". Que assim seja. E o mundo mude. Para melhor.
Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio
O próprio Chaplin declarou que se tivesse conhecimento da verdadeiro estofo do que ocorreu durante o Nazismo jamais teria realizado aquela obra, daquela forma.
Não questiono o talento do elenco. Realmente as crianças e os demais serviram bem ao roteiro. Problema é que ele é insosso e sem rumo. Waititi é talentoso e engenhoso. Não compreendo o que o levou a naufragar.
Nossa.. insosso e sem rumo?
"Fiquei aguardando o momento em que se iniciaria a mudança para uma fábula melodramática onde um menino entenderia que trilhava o caminho errado e com a ajuda de uma jovem judia adentraria no rumo dos verdadeiros valores da existência."
Esse seria o caminho para cair no vale comum
A grande sacada do filme é justamente não querer colocar uma "reflexão adulta" acerca do tema.. pelo contrário, em tempos onde vemos uma enorme quantidade de crianças simpatizando com o fascismo influenciados pela estética dos memes da internet Waitiki explora e satiriza os pontos de sustentação do fascismo aos olhos de uma criança.
Imagina um fascista caindo de paraquedas numa sessão de Jojo Rabbitt, como você acha que esse sujeito vai ser impactado? E se ele rir das piadas com Hitler?
Muito foda!
Kadu quem comparou com Chaplin não fui eu.