Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

A democracia não é um passeio.

6,0

A gestão do ex-presidente dos EUA, George W. Bush, pode ser reprovada por dez entre dez pessoas ao redor do mundo, mas de uma coisa não se pode reclamar: suas ações na política externa viraram um prato cheio para Hollywood. Nos últimos anos, vários filmes que tocam direta ou indiretamente no tema chegaram à telona. Há espaço para tudo, desde produções mais politizadas (Leões e Cordeiros, Syriana - A Indústria do Petróleo e No Vale das Sombras), passando por algumas cômicas (Jogos do Poder), chegando até a trabalhos que priorizaram a ação e o entretenimento (Rede de Mentiras, O Reino e Zona Verde). No campo do documentário, Bush é figurinha carimbada, seja como protagonista (nos filmes de Michael Moore) ou coadjuvante (Sem Fim à Vista e Procedimento Operacional Padrão). Deu tempo até para uma cinebiografia meio opaca dirigida por Oliver Stone (W).

Outro representante que se junta a esse grupo é Jogo de Poder, dirigido por Doug Liman, e baseado nos romances Fair Game, de Valerie Plame, e The Politics of Truth, de Joseph Wilson. Nos livros, os autores, ambos casados, jogaram no ventilador as suas versões sobre os fatos ocorridos em 2003, quando a identidade de Plame, uma agente secreta da CIA, foi revelada pela própria Casa Branca, em represália ao artigo publicado por Wilson no The NY Times. Se a história parece familiar, não é de se estranhar: ela foi levada às telas, de forma ficcional e com o nome dos personagens alterados, em Faces da Verdade, dirigido Rod Lurie. Liman vai no caminho oposto: ele retrata o episódio propriamente dito, dá nome aos bois (inclusive aos políticos do alto escalão da época), e realiza um filme que, se não é plenamente satisfatório, vai além da mera diversão e (quem diria?) faz o público refletir. Considerando o nível da atual produção do cinema americano, essas duas qualidades já tornam o filme em algo diferenciado.

O plano inicial nos mostra as maiores Torres Gêmeas do mundo, localizadas em Kuala Lampur, capital da Malásia. A alusão ao evento de 11/09/2001 é óbvia. Somos apresentados à personagem de Naomi Watts. Ela se anuncia como Jessica McDowell, representante de uma empresa química, canadense de nascimento e fã de hóquei sobre o gelo. Está lá para falar com um empresário local sobre negócios comerciais. Não demoram poucos minutos para a verdadeira McDowell aparecer: seu nome é Valerie Plame, ela é uma agente da CIA, e a última coisa que pretende fazer é falar sobre produtos químicos. Ela coloca o sobrinho do empresário numa emboscada e consegue dele extrair dados importantes que a ajudarão na investigação sobre tráfico de armas pesadas ao redor do mundo.
 
Aos poucos, o filme vai nos revelando mais detalhes de Plame. Ela é casada com o Joseph Wilson (Sean Penn), ex-embaixador dos EUA em vários países africanos, e último americano a ver Saddam Hussin antes da Operação Tempestade do Deserto, em 1991, quando os Estados Unidos libertaram o Kuwait das tropas iraquianas. No dia a dia, o casal leva uma vida aparentemente normal, se divertindo em bares com amigos em comum. No trabalho, Plame coordena uma equipe especializada em não-proliferação de armas. Tem várias equipes espalhadas pelo mundo, em especial o Oriente Médio. Num belo dia, seu superior a destaca para chefiar o time que investiga a possibilidade de o Iraque ter armamento nuclear. Um dos integrantes que ela indica é seu marido, especialista em Níger, país suspeito de vender uma enorme quantidade de material químico para Saddam Hussein. Wilson viaja até lá, acessa seus contatos, e conclui que a operação não aconteceu. Mesmo assim, o governo Bush decide descartar seu relatório e invadir o Iraque. Sentindo-se traído, Wilson o desmente em artigo no The NY Times. Em represália, a Casa Branca revela propositadamente a identidade secreta da sua esposa. A verdade dos fatos coloca as vidas e o casamento de Wilson e de Plame em risco.

Jogo de Poder situa sua narrativa logo após o ataque do World Trade Center. Com isso, o filme ganha na caracterização do momento vivido no País e torna mais verossímil a atitude dos personagens. Com o distanciamento do tempo, é possível perceber a paranóia que se instaurou nos EUA. Esse sentimento da população era inflado pelos discursos de Bush (sempre apelando para o conflito) e pela imprensa (geralmente optando pelo espetáculo em vez da informação). Na primeira conversa no bar, por exemplo, os amigos de Plame e Wilson revelam insegurança e desconhecimento dos fatos. Um deles diz que sente medo de levar os filhos para a Disney. O outro, generaliza a figura dos iraquianos em seres de turbante sentados na primeira fila do avião, com uma sacola ao lado. Mais à frente, num jantar, os mesmos amigos, comparam Hussein a Hitler. Não deve ter sido fácil residir nos EUA naqueles dias.

O roteiro, de autoria da dupla Jez Butterworth e John-Henry Butterworth, transita bem entre o macro e o micro, entre os conflitos institucionais e os privados. Palme e Wilson têm que lutar pelas suas reputações perante a opinião pública e a imprensa com a mesma força com que discutem seu casamento. É interessante notar que, se antes da crise de Estado, a união de ambos já não parecia caminhar às mil maravilhas (Wilson não sabe a origem das manchas roxas que surgem no braço da sua esposa e chega a desconfiar da fidelidade dela), após o episódio o casal se aproxima, como que encontrando um no outro um porto seguro para as respectivas salvações. Algumas das melhores cenas do filme não ocorrem nos salões do Congresso Nacional ou nos corredores da CIA, mas na mesa da cozinha, quando Wilson incita Palme a se defender das acusações, ou na sala de estar, às 3 da manhã, quando a esposa prepara mais de uma suas viagens secretas, não sem antes deixar afixado na geladeira um sem número de instruções domésticas para o marido.

Jogo de Poder faz questão de revelar as mentiras contadas pelos políticos americanos da época, algumas delas em pleno horário nobre da televisão. A principal delas é a chamada tese do 1%, defendida pelo Vice-Presidente Dick Cheney. Segundo ela, a ação militar americana estaria justificada caso existisse esse percentual mínimo de certeza de que o Iraque armazenava armamento químico. Para tanto, seu gabinete deliberadamente desenterrou o tema da compra de uns tubos de alumino que poderiam servir para a construção de ogivas nucleares. De acordo com o filme, a CIA já havia analisado o assunto e  concluíra que aquele material era obsoleto demais para tal objetivo. Mesmo assim, a Casa Branca foi em frente e, com base numa opinião isolada dentro da agência, vendeu à população a versão que mais lhe interessava. Esse  argumento também é utilizado pela Secretária de Estado, Condoleeza Rice, num programa jornalístico, e pelo próprio Presidente Bush, no discurso anual sobre o Estado da União. Watergate nos olhos dos outros é refresco.

Jogo de Poder é dirigido por Doug Liman. Cineasta nascido em 1965, apareceu para a indústria na comédia Swingers - Curtindo a Noite. Solidificou seu nome com outra comédia: Vamos Nessa, cuja originalidade vinha da narrativa multifacetada. Mudou de estilo no thriller de espionagem A Identidade Bourne. Apesar do sucesso de bilheteria, ele foi preterido das continuações que seguiram. Em Sr. e Sra. Smith, tentou tirar o sarro dos gêneros pelos quais transitara até então, mas o público não embarcou na brincadeira. E errou feio na ficção Jumper, seu maior fracasso. Jogo de Poder é, ao menos do ponto de vista temático, seu filme mais maduro. Aqui não há espaço para as brincadeiras e piadas dos seus primeiros trabalhos, nem para ações mirabolantes dos demais. Liman opta pelo estilo documental, semelhante ao do diretor Paul Greengrass (que, aliás, parece ter-se impregnado em todo o cinema americano de ação). Em certos momentos, incomoda o excesso de câmera na mão, trôpega e urgente. Será que não tiveram dinheiro para comprar uma steadicam? Liman podia confiar mais na história e nos diálogos do seu filme. A atenção do espectador também pode ser apreendida por idéias.

Naomi Watts e Sean Penn trabalham juntos pela 3ª vez. A dupla está evidentemente bem, ainda que, do ponto de vista dramatúrgico, o material não seja tão desafiador quanto, por exemplo, 21 Gramas. Naomi talvez esteja um pouco discreta demais, mas ela consegue nos transmitir adequadamente o dilema de uma vida dupla e a sensação de impotência quando percebe que não será capaz de manter a palavra que empenhou aos seus contatos no Oriente Médio. Sean Penn também tem um papel de destaque, tão importante quanto o de Naomi. Se eu implicava com ele no início de sua carreira (em filmes como As Cores da Violência e Pecados de Guerra ele passa claramente do tom), é inegável que Penn melhorou sensivelmente com o passar dos anos. Aqui ele representa bem o ex-burocrata que dedicou vários anos de sua vida para o País, e que precisa se acostumar com uma vida mais pacata, sem tantos holofotes (veja que ele trabalha em casa, conciliando seu horário com os afazeres domésticos). O personagem se tona ainda mais rico com a possibilidade levantada pelo roteiro, de Penn ter publicado o artigo no jornal mais por egoísmo e por uma necessidade de voltar à ribalta, do que por um dever cívico. O terceiro nome de destaque do elenco é Sam Shepard, como o pai de Plame. Mas sua participação é tão meteórica, que alguns podem  sair do cinema sem nem ter notado sua presença.

A administração Bush ainda precisará ser discutida ao longo dos próximos anos. Os EUA ainda pagam a conta da herança que ela deixou. Como se não bastasse a obsessão em resolver os conflitos internacionais por meio do confronto militar, a crise financeira de 2008, iniciada nos últimos meses do seu Governo, retrato da desregulamentação completa do setor bancário e de investimentos de alto risco, serviu para resumir o que foram os 8 anos que ele esteve no comando do Reino de Camelot.  Talvez venha daí o maior virtude do filme: seu timing, seu senso de oportunismo. O debate sobre a Era Bush é necessário e está apenas começando. Jogo de Poder pode contribuir nessa mesa-redonda.

Comentários (0)

Faça login para comentar.