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Críticas

Cineplayers

As mil e uma representações do século XXI.

7,0
Vivemos hoje, ao menos no mainstream, em um reino de avatares. Não somos apenas o que somos, mas também a imagem que escolhemos criar para o mundo. Com a tecnologia cada vez mais interativa e íntima com o indivíduo, o público respondeu consumindo produtos menos monolíticos, com menos concepção de massa, e mais produtos para arquétipos pré-definidos que semana que vem já não podem estar aqui. Lá nos idos das décadas de 70 e 80, Spielberg pode ter se gabado de plantar as primeiras sementes dessa geração - com seus filmes de horror, aventura e ficção científica que dirigiu e produziu saída da reciclagem ao gosto contemporâneo das matinês cinquentistas que cresceu assistindo. E esse conceito de representar a sua versão do que já é popularmente conhecido é algo para se ter em mente ao assistir Jogador Nº 1, seu novo blockbuster.

E qual não é o prazer de assistir um dos fundamentadores básicos do blockbuster como cultura. É o homem que junto de outros poucos tornou seus filmes eventos, criou um novo nicho - os tais “nerds” - ávidos por se criar em uma cultura com sede por altas tecnologias, que busca a catarse do storytelling de contos fantásticos e que a pele em que habitavam fosse tão maleável quanto roupa - a ponto de skin de certa forma virar jargão. E essa é a história de Wade Watts, o típico underdog do cinema americano, perdedor de marca maior que vive em um conjunto habitacional em Ohio no longínquo ano de 2045. A versão distópica do nosso mundo apresenta uma população viciada no OASIS, um jogo de realidade virtual onde você pode caracterizar seu avatar para participar de que aventuras quiser e onde as pessoas tragicamente investem grandes somas de dinheiro real para suceder no jogo. 

Tirado da novela de 2011 de Ernest Caine, a história sobre o futuro exagera a escala mas passa longe de ser inimaginável. Sem julgamentos pré-estabelecidos sobre a nova geração, Spielberg estreita a linha tênue entre o concreto e o virtual quando o criador James Halliday morre e deixa três chaves escondidas dentro de seu grande jogo. Isso atrai Watts - que assume a “pele” de Parzival, jovem aventureiro e fanfarrão aos moldes de Marty McFly - seus contatos virtuais Aech, Sho, Daito e seu interesse romântico Art3mis, que desconhece a identidade por trás dos nicknames e, é claro, Nolan Sorrento, o chefe corporativo da organização IOI que planeja tomar posse do OASIS para monetizá-lo e fazer com que as pessoas cada vez mais tenham que trabalhar para ele em regime escravo para quitar as vultosas dívidas contraídas.

Que a estrutura seja manjada não deixa de ser uma verdade; e é curioso o quanto Jogador Nº 1 lembra em vários momentos o clássico infantil A Fantástica Fábrica de Chocolates em sua jornada de apresentar um mundo fantástico ao protagonista miserável, retratar sua ascensão onde outros com mais recursos fracassam, com seu caminho das pedras aos olhos de mentores cuidadosos enaltecendo uma jornada moral calcada em um sistema de aprendizado e recompensa. 

Conhecer todos os passos que Spielberg dará pode tornar a experiência um tanto previsível; mas jamais aborrecida. O cineasta do auge de sua experiência de 71 anos de vida, 47 deles dedicados ao cinema. Spielberg não é burocrático e mostra que ter dirigido filmes como Os Caçadores da Arca Perdida e Jurassic Park são mais que credenciais pertencentes ao passado: são parte do DNA do homem que criou o cinema popular de nossos tempos, que troca aqui a “skin” das matinês de arqueólogos em tumbas esquecidas pela de qualquer coisa que o protagonista queira ser. Ficção científica é mais uma ambientação que um gênero em si, e nas mão de um artesão como Spielberg é outra roupa para vestir.

Por vezes, Jogador Nº 1 é cheio de excessos, com as mil e uma referências mais feitas para arrancar aplausos e gritos para o tal “aficcionado” pela cultura pop rir, bater palmas e expressar sua gratidão em voz alta, sem ter muita consciência de que ele é o objeto de análise do filme. Spielberg com seus longos planos, seus exuberantes e desgovernados travellings e sua encenação em profundidade que valoriza a relação da figura com o seu fundo, do indivíduo com seu meio, consegue imaginar algumas discussões interessantes mesmo em meio à habitual história de um protagonista padrão e sem grandes pecularidades, cercado por coadjuvantes que são meros adornos (os amigos talentosos, o interesse romântico que o desperta do individualismo) e do vilão unidimensional: a possibilidade de mundo modelável a partir da fabulação.

Aqui, a história virtual e a real não são apenas paralelas, como o cinema industrial descobriu como fazer em seus primórdios, mas também interdependentes. Um exercício de pós-modernidade, como o cinema autoral americano descobriu em filmes que amarravam suas narrativas em contextos simbólicos. Se para Hitchcock, por exemplo, Um Corpo que Cai tem uma narrativa que persegue os passos da outra para modificá-la, Spielberg mostra como a realidade virtual e o OASIS podem ser uma prisão muitas vezes, onde uma massa alienada esqueceu como é o mundo fora de sua caverna de led - mas também é uma ferramenta de autodefinição, de ser quem você quiser, e também de insurreição, de pertencer a um clã, a um sistema, e escolher se conformar ou não com ele.

A referência mais aprofundada aqui - a grande sequência do segundo desafio dentro das sequências de O Iluminado, de Stanley Kubrick - mostra como Spielberg pode até dar a mão à palmatória ao desejo glutão por mais e mais referências e certo desprezo por narrativas de maior poder simbólico, mas que também pode levar longe ao desejo de deslocar a referência, tirá-la de território, ressignificar e tornar algo seu. Seu Hotel Overlook é como seu parque jurássico: um trem-fantasma de catarse moralizante, que despreza regras para brincar com moldes. O fanservice tem seu poder instanâneo, como uma dose vertida em um gole só; mas Spielberg quer mais do que isso, e para isso temos justamente as set-pieces, as grandes sequências, cerebralmente construídas

Esta é a terceira distopia de Spielberg após A. I. - Inteligência Artificial e Minority Report - A Nova Lei, mas o prospecto deste filme para a tecnologia é definitivamente menos assustador. No filme com Haley Joel Osment, robôs e humanos passam a disputar espaços e impossibilitam a coexistência entre humanidade e tecnologia. Na obra com Tom Cruise, o diretor questionava a verdade instituída como ferramenta governamental. Jogador Nº 1, em sua falta de detalhismo ou maior profundidade narrativa, aponta a câmera para o sujeito que o está apaludindo com uma sugestão que a fabulação são óculos mas não são olhos. São ferramentas, mas não muletas. 

Com isso, dá um sopro para chacoalhar as estruturas de um cinema industrial capenga, que se sustenta com suas franquias anti-imaginativas que adaptam as mídias originais de maneira quase religiosa. Filho de um contexto mais libertário, onde o que era popular era menos regrado, onde as artes industriais não eram tão vítimas do “esquema de jogo ganho” onde desafiar importava mais que agradar, Spielberg pode até pegar voo nessa onda nostálgica em seu filme que tem lá suas imperfeições essencialmente por carregar as tintas mais nos adornos do que no cerne, mas é bom lembrar: ele foi o primeiro dos nostálgicos, e assim como remoldou o cinema B dos drive-ins em Indiana Jones e Jurassic Park, sua remodelagem dos videogames é um filme de Spielberg, com tudo o que isso acarreta de bom: idealista e imaginativo; inocente e deslumbrante; excessivo e imersivo. Um tratamento pessoal sobre a cultura pop por um de seus principais criadores.

Comentários (1)

Chcot Daeiou | segunda-feira, 02 de Abril de 2018 - 13:22

tô querendo ver esse... tão dizendo que é Spielberg da gema!?!

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