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Críticas

Cineplayers

A obsessão esvaziada.

4,0
Assumir que uma biografia não precisa necessariamente contar toda a vida do biografado é uma prova de maturidade de realizadores que enveredam por esse campo; abrir mão em uma biografia de sua estrutura comum de gênero e investir em uma única característica do biografado é quase um ato de coragem, e quanto a isso o novo filme de Mauro Lima precisa ser comemorado e tratado como bicho raro, principalmente num mercado onde a biografia básica é tão repetida. O diretor da publicidade que há algum tempo migrou para o cinema vem criando um carinho preferencial por biografias desde sua estreia com Meu Nome não é Johnny e anteriormente se arvorou no braço musical do gênero com Tim Maia. Capitaneado pela lendária família Barreto na produção, esperava-se que o longa baseado na vida do pianista e maestro João Carlos Martins tivessem todos os predicados possíveis. Tem alguns, mas não muitos. 

Muito recentemente o novo longa de Selton Mello (O Filme da Minha Vida) mostrou que valores de produção podem sim travestir um longa metragem e até disfarçar seus problemas, mas raramente esse expediente tem resultado positivo. O caso desse filme de Mauro é ainda mais complexo, porque suas qualidades enchem os olhos nos lugares onde seus filmes sempre encantam desde a estreia: fotografia, direção de arte e figurino. Mas talvez Mauro esteja esgotando os coelhos de sua cartola, já que esses valores estão cada vez mais solitários. Além disso, valores de produção não englobam roteiro e direção, ambos aqui a cargo do mesmo Mauro, que apesar da validade da tentativa, não consegue elevar o material da premissa a uma resolução razoável, terminando por fim em manter a ideia de focar numa única característica a apenas isso, uma bela e acertada ideia, não desenvolvida a contento. Será que não teria sido mais válido lidar com uma narrativa tradicional e não forçar uma ousadia? 

A obsessão de João é o mote, um belíssimo mote diga-se. Parece curioso que o filme abra com as definições do verbete 'paixão', segundo o dicionário. Não é incomum vermos a paixão e a obsessão estarem unidas e atreladas uma a outra, grandes obras já tiveram esse viés. Que esse seja o mote da narrativa de uma biografia sobre um músico, até o recente Whiplash já versou sobre essa pauta. Outro ponto interessante do roteiro é unir dramaticamente em passagens distanciadas no tempo momentos onde essa obsessão encontra ecos e conversem entre si, traçando um paralelo de situações e causos. O que não conseguimos atinar é o propósito para tal, se em detrimento a isso perdemos justamente a empatia que liga essa característica ao personagem, que inclusive esvazia todos os seus coadjuvantes a um ponto de apenas parecerem todos fantasmas desimportantes ao redor do pianista. Ou seja, o filme comete o pecado mortal de esvaziar sua narrativa da paixão tão preponderante a qualquer obsessão. 

O elenco parece pouco exigido, o que não deixa de ser curioso. Um projeto tão grandioso, uma história real sobre adversidades vencidas e um herói com uma vida tão rica de acontecimentos e superação, não parece que a direção de atores tenha tido um grande trabalho a realizar. Os personagens secundários não têm muita função a não ser ornar a história, e chega a incomodar que belos atores como Caco Ciocler e Giulio Lopes tenham desenvolvimento tão inexistente, já que ambos (enquanto mentor e pai de João) foram cruciais na formação de seu talento e personalidade musical. Mesmo Fernanda Nobre, que interpreta a primeira mulher de João, parece ter sua importância reduzida, e seus esforços dramáticos tolhidos por roteiro e montagem, ainda que vislumbremos um esforço real da atriz. Alinne Morais simplesmente não tem nada a fazer, e não faz. 

Então chegamos ao trio que defende o protagonista: na fase infantil, o menino Davi Campolongo tem olhar intenso e expressivo, já os adultos Rodrigo Pandolfo e Alexandre Nero conseguem reproduzir alguns vícios e tiques de João, olhos e expressões características, e conseguimos observar que ambos trabalharam juntos num timbre vocal único. Mas isso tudo é mimetismo (ainda que um belo mimetismo), e tirando isso fica o esforço que os três obviamente fizeram para reproduzir os movimentos de mãos de um exímio pianista como o retratado. Só que, como ao filme, sobra intenção e falta paixão real que transborde na tela, e a última cena de diálogo de Nero deixa isso claro. 

A observação final deixa claro que Mauro Lima caminha em ritmo de ladeira abaixo. Há uma década ele estreava no cinema com sucesso de público e crítica, e agora parece ter tomado pra si um nicho do nosso mercado. Notadamente abraçando um gênero de fácil acesso popular, Mauro volta a jogar pra plateia mas agora parece não ter mais cuidado em agradar ninguém além do público, que com certeza tem um carinho especial pelo alvo de suas biografias e abrirá a guarda pela empatia que tal figura suscita, mas essa empatia não nasce do filme de Mauro. É uma atitude fácil e rasa, observar apenas o consumidor final de seus produtos notadamente populares. Mas pouco além da admiração por João Carlos Martins pode provocar maior comoção pelo novo filme, que apesar das excelentes intenções, não consegue realizar a contento a maior parte delas. 

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