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Críticas

Cineplayers

On stage I make love to twenty five thousand people; and then I go home alone.

8,5
Quase todo documentário sobre sujeitos sofre, para bem e para mal, da necessidade de abarcar uma totalidade, de desesperadamente correr atrás de uma amplidão de conhecidos e de documentos (fotos, cartas, telefonemas, vídeos etc) para recriar as trajetórias, num esforço consciente e pesaroso de reconhecer que as nossas histórias estão em todos os lugares que passamos e em lugar nenhum ao mesmo tempo. E precisamente porque é necessário (e involuntário) criar imagens, arquivar afetos e transformar algo em memória que o cinema carrega, desde sua gênese, um desvio pelo documental. Se nunca antes a possibilidade de registrar isso que se esvai foi tão potente – como se dissessem: agora é possível, também, encadear essas histórias, emprestar a elas a voz que se quiser -, o desejo de contar a vida dos outros se infectou ainda mais quando foi possível, bem nos anos sessenta, com a aparelhagem de registro síncrono de som e imagem, emprestar àquilo que se filma um tom de verdade. Bem parecia, ali, então, no seio de uma estilística crua, trêmula e próxima das coisas, que finalmente estaríamos equipados o suficiente para entregar, a quem quisesse ver, essas vidas-por-inteiro. E é por recusar isso que Janis: Little Girl Blue (2015) se sobressai: Amy Berg sabe muito bem que sujeito algum é apreensível, mas que o esforço é mais válido do que qualquer ato.

Se o documentário começa muito bem como qualquer outro, tentando inserir Joplin num contexto de diferença, do esquisito diante da massa homogênea, do grande gênio em meios de se criar, e para tal se utiliza de depoimentos de familiares e amigos de escola, além do recurso óbvio das fotos em que a menina demonstra rebeldia e excentricidade, talvez isso se dê porque parece haver uma ideia cristalizada em torno do artista ou da vida extraordinária como algo sobrenatural, e como numa tentativa infrutífera de reafirmar algo de que já se tem consciência pelo louco fato de que estamos diante de um filme, esquece-se o tempo inteiro que tudo aquilo que as lentes capturam já passou para um estado muito além do ordinário: tudo que filmamos é a coisa e algo a mais. Por que isso também não se daria (e especialmente) com indivíduos? A riqueza das imagens e cartas está ali, o esforço em recuperar as singelas produções da subjetividade é, sim, suficientemente admirável, mas até que ponto o gesto não entra no território da linha biográfica como conjunto de datas e movimentos (se mudou para 'x', voltou para 'y', onde 'z' aconteceu…), sempre sujeitando a imagem à sua função ilustrativa. Janis está ali? Também. Mas seu efeito de presença está infinitamente mais palpável quando ela se mostra por si mesma, na performance da performance.

Quando o documentário promove o desvio da linha histórica para a imagem de arquivo, a imersão é semelhante à de uma imantação incontrolável entre os olhos e a mais pura energia criativa. Um sopro de ''finalmente'', uma fixação na figura de Joplin em todo o seu magnetismo, como se a vida em seu estado mais límpido de vulnerabilidade estivesse contemplada por inteiro nas imagens, nas gargalhadas histéricas, na verve inocente, no corpo descontrolado ao cantar, na paradoxal solidão de quem estava, ou ansiava por estar, sempre rodeado de uma vibração que não a sua própria. Há um sem-número de razões porque a vida artística mobiliza o desejo erótico, a devoção inconsequente ou a partilha de sensibilidades, mas é bem possível que uma de suas mais urgentes seja mesmo o espanto inicial diante do rasgão de espírito em que se encontram esses seres mitológicos que apelidamos gênios. Não por acaso o policiamento dos artistas ultrapassa a condição de adoração (o Estado o faz até hoje), não por acaso estes foram sempre temidos: há um traço de fluidez, uma espécie de condição natural que é nada menos que a complexidade dada à vista, a possibilidade múltipla de revolução permanentemente exposta. 

É dentro dessa complexidade mesma que Berg opta para montar os significados. Em outras palavras, o filme ganha pela confusão, pela indiscernibilidade entre quem, finalmente, é Janis Joplin. Cada entrevistado com sua teoria para explicar os motivos pelos quais a menina selvagem era depressiva, até que uma amiga íntima diz que Joplin sequer era depressiva. Mas ninguém está certo. A tarefa, na verdade, não é essa. Tudo são variações da percepção para dar conta da melancolia que é perceber estar só no mundo e vê-lo como uma coleção de solidões. Cada qual com seu amor e guardando dela um memento direcionado: propõe-se que Janis seja lembrada em sua tristeza e unicidade, porém conscientes de que o ato de rememorar não obedece ordens. Por isso eles se desculpam, voltam atrás, negam, pedem permissão para passar por certo caminho antes de responder (a presença do enunciador). Nesse descontrole, dela e do filme como ordenação de um discurso, todo documentário guarda um embrião de magnetismo, de convocação para que se veja quem está ali, Também por isso Janis e todas as artes são necessárias. Porque, bem no fundo, incendeiam a norma.     

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