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Críticas

Cineplayers

Uma das melhores adaptações medianas de Stephen King.

7,0
A obra mais celebrada e adorada de um dos autores mais celebrados e adorados do século XX, It é o grande exercício criativo de King. Em suas mais de mil páginas, o autor criou um universo que sumarizava todos os elementos de sua obra até então ao contar a história de sete crianças e suas interações com uma criatura sobrenatural conhecida apenas como “a Coisa”, que frequentemente se materializa na forma do palhaço Pennywise. 

Adaptada para a televisão em 1990 na criticada minissérie It - Uma Obra Prima do Terror, com Tim Curry no papel do vilão e Tommy Lee Wallace (Halloween III) na cadeira de direção, a obra teve uma nova adaptação bastante conturbada, anunciada pela Warner pelos idos de 2009, com Cary Joji Fukunaga (True Detective, Beasts of no Nation) e depois, por transformações no roteiro por conta de cortes orçamentários, passada para a New Line Cinema com a condução argentino Andrés Muschietti (do curta-metragem sensação Mamá, que depois transformou em longa).

Com King sendo um autor com muitas adaptações, a maioria cai no vale do esquecimento; só no ano de 2017 temos quatro obras, incluindo It: A Coisa, que adaptam o rei do horror urbano - as outras sendo os filmes A Torre Negra e Jogo Perigoso e o seriado O Nevoeiro. Mas poucos projetos ancoraram o tamanho do burburinho de It; as primeiras fotos foram recebidas com um misto de reações, o trailer já levantou expectativas e os primeiros pronunciamentos positivos da imprensa e público americano deixou os milhares de fãs ao redor do globo ansiosos, para dizer o mínimo.

Muschietti não descartou completamente o trabalho de Fukunaga, de quem partiu a ideia de dividir o trabalho em duas partes, com a primeira abordando os protagonistas ainda crianças e a segunda o seu retorno à cidade de Derry já adultas, ao invés da alternância temporal que King utilizou de maneira quase radical na obra. Então, apesar de vir aos nossos olhos muito menos imaginativo e delirante do que foi lido originalmente, It nem por isso deixa de ser um filme com méritos próprios.

A ideia de Fukunaga deixa a primeira parte, “O Clube dos Otários”, com a responsabilidade de ser um “filme de formação”, onde os conflitos pessoais dos personagens Bill, Stan, Beverly, Mike, Richie e Eddie coexistem com os encontros com Pennywise e a descoberta da sua antiga história de tormentos e maldades em Derry. Mexendo aqui e ali, desde a época que a história se passa (dessa vez, 1989 ao invés de 1958) até nas origens de alguns personagens, o filme ganha por estender os braços para certos aspectos que King havia deixado meio que de lado, como a criação judia de Stanley Uris e os medos de Richie Tozier. Do mesmo jeito, a consistência relativos ao limite dos poderes da criatura também foi melhor abordada aqui.

A ambientação oitentista, aliás, parece feita para agradar uma época cujo olhar retrô está em voga; temos música da época, o ator Finn Wolfhand (Stranger Things) como Richie e até referências culturais. Mas foi uma escolha feita com consciência e cuidado, jamais deixando pontas soltas e até mudando detalhes da história original visando o público de uma época mais próxima que com certeza só possui uma minoria entre suas fileiras que se interessaria pela reconstituição da época que King promovia, com suas muitas referências a programas de televisão, estrelas de rádio, atores de cinema e rock and roll cinquentista.

A habilidade de metamorfose de Pennywise e a forma como ela se materializa nos piores medos das crianças seria o sonho de qualquer cineasta do gênero fantástico de brincar com luzes, angulações, lentes e sons; aqui, é o parque de diversões da equipe de design de produção e efeitos de computação gráfica, que é onde Muschietti ancora todo o terror do seu filme, com raras exceções (a sequência dos slides revela-se um exercício de luz e montagem bem interessante) é um festival de parafernália e artifícios com pouco ineditismo.

Mas o miolo desse capítulo - não chamado de “O Clube dos Otários” à toa - é sua qualidade humana, com as interações entre os personagens exploradas ao gosto da obra original. O abuso do pai de Beverly que a levam à autopunição, ou a personalidade violenta do antagonista Butch Bowers moldada pelo seu pai brutal e intimidador ou a criação castradora da mãe de Eddie Kaspbrak que o faz desenvolver uma neurose hipocondríaca são mesmo com momentos alterados aqui e ali o ouro do filme. 

Pode-se dizer que é imperfeito em alguns pontos - a famosa “guerra das pedras” é muito mais intensa e exaustiva no livro e aqui vira um momento rápido, empolgante e até por vezes engraçado, com thrash metal ao fundo, cortes rápidos e não servindo para muita coisa além de unir Mike Hanlon ao grupo, sendo um momento mais de passagem que qualquer outra coisa, o que pode gerar uma certa frustração para os que esperarem um dos momentos altos da película. Da mesma forma, a interação dos protagonistas com seus pais em sua maior parte resume-se a uma cena ou duas, sem maiores prólogos ou consequências. 

Um dos maiores problemas que o filme “paga o pato” é ser ao mesmo tempo um filme de formação pré-adolescente e um terror encerrados em pouco mais de duas horas, o que narrativamente o faz suar para introduzir tantos conflitos diferentes dos personagens e tantos aspectos mitológicos a serem explicados e, com a história sendo estabelecida, dar desenvolvimento às suas questões. Muschietti então lima do filme muitos aspectos que literalmente paravam o desenrolar para estabelecer o cânone (como o “ritual de fumaça” que explicava a origem da Coisa) e alguns conceitos complicados (o desafio de Chüd, magia que se utiliza no combate ao monstro) para fazer com que seu filme tenha então material cinematográfico que garanta material dinâmico. 

Muschietti toma muitas liberdades em relação à obra original, o que para nossos tempos é algo mais problemático que nunca para muitas bases de fãs. Mas em um filme de duras horas, que tem de transformar descrições literárias em visões concretas, acaba tornando-se uma necessidade para maior dinamismo a favor do impacto dramático. 

Mas nem assim o filme consegue largar da sensação de corda bamba, perdendo a sutileza dos dramas de infância ao ter que caminhar para o horror dos sons altos que pululam do nada, da música diegética abusiva e quase sempre óbvia e da caracterização “maléfica” e quase gótica de Pennywise, que tiram um pouco do brilho tão bonito quanto pesado nas cenas que envolvem os dramas da vida real de seus personagens. Entretanto, a interpretação de Bill Skarsgård como o monstro não faz feio - ele realmente se diverte de maneira criativa com a monstruosidade lúdica de Pennywise, como na composição da voz e na maneira de andar, mais um “clown” do que monstro genérico. A interpretação antológica de Tim Curry, inevitável comparar, ainda ganha aqui por sua aparência mais inocente que revelava-se então terrivelmente errada. Já neste caso, o palhaço já é um prenúncio de perigo aos olhos do espectador desde o primeiro momento, o que deixa mais óbvio e menos sugestivo - mais “tenha muito medo” e menos “será que é perigoso?”.

Como filme de personagens, It: A Coisa compete de perto com clássicos como Conta Comigo, Louca Obsessão e Um Sonho de Liberdade. Como filme de terror, passa longe de ser tão esteticamente impressionante e com um atmosfera tão evocativa como muitos excelentes predecessores - a saber, Carrie - A Estranha (1976), de Brian De Palma, O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, Christine - O Carro Assassino (1983) de John Carpenter, A Hora de Zona Morta (1983) de David Cronenberg e o mais recente O Nevoeiro (2007) de Frank Darabont. Perto deles, a composição de Muschietti para a evocação do fantástico é didática, pouco calculista e sem muita paciência para a evocação de um clima realmente macabro, como o banho de luzes, cores, movimentações de câmera e utilização narrativa de música e silêncio de maneira inteligente. 

Essas observações mais taxativas podem fazer com o que filme possa parecer pior do que é, na verdade, mas não é o caso, pois é notório o amor que o diretor nutre pelo seus personagens, sabendo fazer com que com que uma montagem ou encenação cênica simples nos contem sem precisar dizer muito momentos de atração amorosa, afeto e conflito, bem mais instaurado dentro do grupo como um todo que no original, quando estavam juntos, funcionava como uma única célula, unida e leal. Aqui há momentos de divergências, embates físicos, separação que funcionam como excelente gancho dramático. A estratégia favorita do King autor de terror, com o sobrenatural pegando seus personagens despreparados quando estão no ponto mais baixo dos seus problemas pessoais ganha fôlego novo aqui, e talvez seja a única razão para o terror básico e pouco ousado de Muschietti funcionar.

Analisando somente como filme assistido por um espectador não muito antenado com Stephen King e seu universo tão vasto, It - A Coisa é mais funcional do que muito do cinema de terror despejado nas salas de cinema todo ano; tem personagens com os quais realmente nos importamos e tem algo a oferecer dramaticamente além de apenas um “passeio pelo trem fantasma”. Mas perto do que era o misto de drama de subúrbio, fantasia e exercício de criação e delírio que foi a obra que adapta, ainda faltou um pouco de substância.

Comentários (5)

●•● Yves Lacoste ●•● | sexta-feira, 08 de Setembro de 2017 - 18:04

O subtítulo "uma obra-prima do medo" combina mais com este do que com o de 1990. A cena inicial do bueiro bem explícita já mostra que o resto do elenco mirim não vai ser nenhum pouco poupado. O novo "It" é assustador, agressivo, altamente violento e com sangue jorrando por todo lado. Massa de mais!

Augusto Barbosa | sexta-feira, 08 de Setembro de 2017 - 20:37

Minha curiosidade maior é ver se a Tartaruga aparece - pela duração, acho que não.

SÁVIO MINA DE LUCENA | segunda-feira, 11 de Setembro de 2017 - 09:39

Ótimo filme sobre a amizade com uma forte pegada oitentista, mas como terror achei ele bem mediano. O próprio Pennywise é falho ao ter a aparência mais assustadora do que inocente, tornando-se um "monstro" comum dessa forma. Alguns jumpscare pra dar aqueles sustos de sempre e partes em CG (que não assustam ninguém) deram uma tônica do terror dos filmes atuais (vide Annabelle).

Pra quem apreciou Stranger Things ou mesmo de Conta Comigo (do próprio SK) vai gostar bastante, visto que os personagens e o elo entre eles é muito bom, bem construído. Mas enquanto terror o filme mergulha no trivial contemporâneo, diferindo pouco de outras produções atuais.

Robson Oliveira | sexta-feira, 01 de Março de 2019 - 20:07

Excelente filme, e concordo o Yves, o subtítulo "uma obra prima do medo" combina muito mais com esse aqui, falar que esse filme não assusta ninguém, é ousadia demais, as cenas são bem macabras e tensas que acaba provocando bons sustos, ao contrário do original de 1990 que esse sim não assusta ninguém mas é também um ótimo filme. Enfim, este filme entra pra minha coleção de melhores do terror contemporâneo. Amei demais o filme e estou super ansioso pela parte 2.

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