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Críticas

Cineplayers

O fantasma do luto.

10,0
A cena que fez Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now, 1973) entrar para a história do cinema foi a do sexo selvagem entre Julie Christie e Donald Sutherland, na cama do hotel onde os seus personagens estão hospedados durante uma temporada na cidade-título. Até hoje muito gráfica, a sequência toda é lembrada pelos cortes rápidos, pela não linearidade dos atos, pelo caráter quase amador da montagem, em um delírio visual chocante arquitetado pelo diretor Nicolas Roeg. Acima de tudo, choca por ser uma cena sem nenhum tipo de apelo sexual. Após a perda da filha, que se afoga no lago do jardim da casa, Laura e John têm seu casamento assombrado pelo fantasma da garota. Tentam superar, viajar, espairecer, lidar, mas no fundo não se reconhecem mais. Nessa cena de sexo tão estranha, bizarra e sofrida, o que temos afinal é um casal lutando desesperadamente por uma forma de se reconectar. 

Tudo em Inverno de Sangue em Veneza está fragmentado. Depois de uma abertura que vai do bucólico ao puro horror, Roeg estilhaça sua narrativa e constrói um labirinto de espelhos partidos, onde as imagens se refletem, se cruzam, rimam, porém jamais se completam, deixando sempre lacunas e uma sensação de mistério jamais de todo desvendado ou compreendido. A morte da filha promove um tipo de ruptura que atinge a trama em todos os níveis possíveis, desde as relações dos personagens até na forma como Roeg traduz em imagens o horror daquele trauma. Muito visual, é um filme em que as imagens falam por si só, em que pouco é dito ou verbalizado, mas o tempo todo é possível de alguma forma compreender o rumo das coisas em meio a tantas elipses e ocultações. 

Um dos recursos mais primários nessa concepção visual muito poderosa e atmosférica é a opção de Roeg em banir as cores quentes da maior parte dos quadros, reservando elas somente para momentos pontuais. O vermelho, em especial, que na abertura tinge a capa de chuva da garotinha que está prestes a se afogar, só retorna de tempos em tempos para nos lembrar inconscientemente da aproximação de alguma tragédia. Sempre que há vermelho no quadro, existe uma ameaça latente, e por isso, sem precisar dizer nada, Roeg nos deixa aterrorizados quando John e Laura passeiam pelas ruas cinzentas de Veneza à noite e de repente se deparam com um personagem estranho usando um traje vermelho vivo, que remete à capa de chuva que a filha deles usava quando se afogou. Pensando no filme como um todo, as cores frias quase onipresentes transmitem uma sensação morna e triste refletindo o luto dos pais, enquanto as cores quentes às vezes surgem no ímpeto de nos despertar para o perigo que ainda existe na história. 

Como em todo grande filme de horror, Inverno de Sangue em Veneza sobrevive quase que exclusivamente de sua atmosfera. Independente de roteiro, texto ou elenco, é uma obra em que as imagens aterrorizam por si só e há sempre algo de muito assustador no ar, mesmo que essa ameaça quase nunca se concretize. Afinal, o fator sobrenatural é sempre implícito e centralizado na figura da filha morta, que guarda em si tanto a ideia triste e melancólica do luto dos pais quanto a noção de um tipo de premonição nefasta de um destino que os aguarda. As irmãs com habilidades mediúnicas, capazes de enxergar o fantasma da menina, são amigáveis e não representam uma ameaça em si, mas são inevitavelmente assustadoras por não permitirem que o casal consiga enterrar de vez a memória da filha. Nesse universo em que o mal nunca é de fato esclarecido e o horror nunca corresponde a algo concreto, Roeg dá seu jeito de tratar do instintivo medo do desconhecido, capaz de se mutacionar em muitas formas. 

Logo fica claro que o que atormenta Laura e John é justamente a lembrança de uma vida que jamais poderá ser recobrada, de uma felicidade que jamais se repetirá no casamento deles. Algo além da vida da filha se perdeu no lago, uma parte de cada um se afogou ali também. Com a sensibilidade de um mestre, Roeg conclui esse triste e assustador filme com a imagem de uma Julie Christie serena e sorridente enquanto navega pelos canais de uma Veneza assombrada, desfrutando do seu recomeço. Se a primeira morte dessa história a destruiu por completo, a segunda lhe possibilitou uma oportunidade única de redenção e renascimento. 

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