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Críticas

Cineplayers

“O tempo é tudo, tudo”.

8,5

Uma das primeiras vezes em que o cinema revelou sua característica de causar impacto em grande escala foi na exibição de estréia do filme A Chegada do Trem na Estação (L'arrivée d'un train à La Ciotat, 1896), dos irmãos Lumière, em Paris. O argumento do mini-filme, que consiste apenas no ato descrito por seu próprio titulo, foi filmado em uma perspectiva lateral, causando a ilusão de que o trem estava vindo em direção à platéia. Os desavisados espectadores foram pegos de surpresa e saíram correndo, em pânico, crentes de que o veículo logo os alcançaria. Hoje pode parecer uma situação engraçada, mas já se pode notar aí o papel da mágica, da ilusão, na composição geral de um filme. Podemos dizer que uma parcela do cinema é composta exatamente da arte de manipular, enganar e iludir o público; envolvê-lo em uma história ou situação que pareça, durante seu determinado tempo, palpável e real, por mais absurda que possa ser. É o poder ilimitado de materializar os mais loucos sonhos através da manipulação de imagens em movimento.

Em um dos momentos iniciais de A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), não por acaso, vemos um trem chegando à sua estação, em Paris. Essa é apenas uma das muitas coincidências entre o nascimento do cinema e a história de vida do pequeno Hugo (Asa Butterfield) que o cineasta Martin Scorsese insere em sua declaração de amor à profissão que escolheu exercer. Temos aqui um gênio do cinema se desprendendo do que sempre foi presente em sua filmografia para se focar no simples ato de homenagear a sétima arte por meio de uma história mergulhada no mágico universo infantil – tão mágico quanto o universo do próprio cinema. Tudo o que sempre fez Scorsese sonhar quando criança por conta dos filmes que assistia ganhará finalmente o reconhecimento do diretor e se mostrará uma verdadeira atestação da consciência de que seus dias como mágico e ilusionista das telonas já estão chegando à sua reta final. Por finalmente assinar uma produção voltada ao público infantil, que de quebra engrandece o cinema como arte, é como se Scorsese estivesse voltando à sua própria infância e nos convidando para mergulhar de cabeça no maravilhoso mundo de magia que somente a mente de uma criança ou o poder do cinema poderia proporcionar. Não é difícil aceitar esse convite.

Hugo Cabret é um órfão que mora dentro dos relógios de uma estação de trem, na Paris dos anos 1930, acertando os relógios quando preciso e sempre escapando das garras do temível inspetor do local (Sacha Baron Cohen), até que um dia o dono da loja de brinquedo, Georges (Ben Kingsley), lhe rouba seu caderno – que, junto com um autônomo desativado, é a única herança deixada por seu pai, um relojoeiro morto em um incêndio – dando a entender que naqueles escritos há algo de muito importante e secreto. Tão importante que nem a afilhada de Georges, Isabelle (Chloë Moretz, uma fofa), pode saber. Agora juntos, Hugo e Isabella tentarão descobrir quais os segredos que Georges e aquele misterioso caderno guardam.

O velho rabugento que furta o caderno de Hugo é uma clara referência ao próprio George Méliès, cineasta que utilizou-se do poder ilusionista do cinema para revolucionar as técnicas de efeitos especiais com o pioneiro Viagem à Lua (Le Voyage Dans La Lune, 1902). A mistura da figura real com o personagem fictício carrega consigo uma carga de metalinguagem e menções honrosas ao cinema antigo que já garante um argumento interessante. Georges é um senhor já idoso dentro da história, que parece amargurado com a vida e que com o surgimento daquele caderno acaba despertando. O mesmo aconteceu com o verdadeiro Méliès no fim de sua vida, ultrapassado por cineastas sucessores que fizeram mais sucesso de acordo com o avançar da tecnologia na época, como Charles Chaplin. Diversos projetos seus foram recusados e, por fim, ele acabou excluso em solidão.

Ciente de que essa situação se repete com o passar do tempo com todos os cineastas – talvez não a ponto de os deixarem na miséria e solidão como no caso de Méliès – Martin Scorsese faz de A Invenção de Hugo Cabret um filme isento da ação do tempo. Como se estivesse deixando um legado, um trabalho que não seja acometido pela passagem dos anos e pelo avanço da tecnologia. Seu truque para realizar essa façanha é, na verdade, bem simples: adaptar para as telonas uma história que se passa nos anos 1930, no berço do cinema, que evoca a beleza do nascimento dessa arte, mas filmada com nova tecnologia de ponta; mais precisamente, aquela mesma tecnologia tão alardeada na divulgação do filme Avatar (idem, 2009), de James Cameron. É um trabalho nostálgico, mas também atual, tanto em seu visual como em seu conteúdo. O 3D é usado em prol da arte antes de tudo, e o meio termo entre o tão bom uso desse recurso com o bom aproveitamento do roteiro da história original de Brian Selznick acaba sendo certeiro. Em um ano em que o cinema já ganhou uma homenagem delicada em O Artista (The Artist, 2011), Hugo vai um pouco mais além por se aventurar no nascimento do cinema, uma era que precedeu até mesmo àquela retratada no filme de Michel Hazanavicius, e reafirma a necessidade de Hollywood e de todos no ramo do cinema em mais cedo ou mais tarde relembrarem suas origens, seja por uma homenagem, seja através de seus próprios filmes – talvez como uma forma de poder assim seguir em frente.

Já dizia Orson Welles, curiosamente dentro de uma estação de trem, em Verdades e Mentiras (Vérités et mensonges, 1973), que parte da arte é pura mágica. David Lynch também frisou essa idéia através do apresentador do Clube do Silêncio, personagem de Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001), que insistia em afirmar que tudo ali apresentado no palco do teatro (e do próprio filme em geral) não passava de uma ilusão. O mesmo se dá com Scorsese e sua jornada pelo imaginário, pela linha tênue entre o concreto e o que se dissipa no ar quando os projetores se apagam. O grande símbolo visual de A Invenção de Hugo Cabret são os relógios da estação de trem, pelos quais Hugo é responsável em acertar diariamente, o que nos remete ao principal elemento-chave da obra: o tempo. O tempo é o único capaz de transcender quaisquer que sejam os problemas ou os obstáculos de nossos personagens, e também é o grande inimigo daqueles que precisam ver no cinema uma fuga feliz da realidade cruel.

É contra o tempo que não somente Hugo, Isabelle e Méliès correm, mas também o próprio Martin Scorsese, um cineasta já velho que ainda se mantém no topo e que agora sente a necessidade de se aventurar como uma criança de encontro com as leis da natureza. O tempo vai passar sem piedade e um dia ele estará velho demais até para o cinema, como o verdadeiro George Méliès no fim de sua vida. Logo seremos nós as crianças, "os Hugos" perdidos numa grande estação de trem, encontrando na experiência de Martin Scorsese uma maneira de continuar com a mágica do cinema para as próximas gerações. Logo ele estará passando o bastão para seus sucessores e assim sempre será. E quem sabe um dia, em um futuro muito distante, um filme de tecnologia de ponta talvez nos conte a história de um menininho sonhador que em um dia qualquer acaba encontrando por acaso um senhor velhinho e franzido, de sobrancelhas grossas e sorriso simpático, que lhe ensina o grande segredo de como lutar contra o tempo: através da mágica, da ilusão - através do cinema.

E quem diria que 116 anos depois da primeira exibição de A Chegada do Trem na Estação, a situação de um trem vindo em direção à plateia(desta vez com a ajuda do 3D e com a noção de espaço de Scorsese) ainda seria capaz de causar comoção em um público iludido momentaneamente pelo poder da imagem em movimento.

Comentários (31)

Letícia | quinta-feira, 14 de Fevereiro de 2013 - 07:58

Adorei esse texto, maravilhosa a critica!
A primeira vez que assisti Hugo eu não sabia nada sobre o Scorsese e mesmo assim fiquei muito encantada com o filme. Um tempo depois voltei a assistir já conhecendo bem melhor a carreira dele e o filme voltou a me encher os olhos de uma maneira ainda mais especial. Scorsese se torna mais inovador e perfeccionista com o passar dos anos. Hugo é um filme leve e com uma mensagem intensa que é capaz de agradar a qualquer tipo de público. Genial mesmo.

Landerson DSP | sábado, 25 de Janeiro de 2014 - 17:46

No final do penúltimo paragrafo, eu senti uma lágrima escorrendo. Texto belíssimo.

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