Mitos e lendas japonesas foram constantemente revisitadas e tornadas parte integrante da carreira de Kenji Mizoguchi, criando pra si mesmo uma própria dose de mitologia. Em uma carreira prolífica, um dos grandes mestres do cinema japonês veio lançar Intendente Sansho somente um ano após Contos da Lua Vaga, e ambos bebiam dessa observação da arte cinematográfica a respeito dos clássicos contos passados de geração em geração e traduzem o folclore de um povo. Essa mecânica é também a base do longa, que transita narrativamente por entre o lugar da construção folclórica das histórias que ultrapassam o tempo e as gerações.
Aqui a recriação imagética do folclore de um Japão feudal absorve a ideia da memória presente na difusão dessas lendas para servir de matéria-prima para a própria narrativa. Em Intendente Sansho, Mizoguchi investiga o lugar onde o passado é rememorado e transformado em lamento e cânticos, a reescrever continuamente a História. Há um debruçamento dos desafortunados pelo acesso contínuo às suas raízes, para que elas reverberem. Por isso o apreço à cantigas que contem suas dores irremediáveis, que evoluam através dos espaços a manter como tábua de salvação seus resquícios de sanidade.
Tratando com a mesma reverência o presente e o passado, o diretor não os difere imageticamente, deixando claro que sua narrativa trafega por ambos os tempos sem qualquer distinção. Como um espiral em moto-perpetuo, gravitam no mesmo contexto o hoje e o ontem, a fantasia e o fato, a memória e a lucidez; dentro do universo fílmico, a saga familiar onde se desdobram e diferem quatro destinos, pais e filhos se desencontram e literalmente são levados a personificarem tipos que se tornarão folclóricos, no que o próprio filme já antecipa e demonstra - é a mola propulsora temática criando alicerce para sua própria narrativa interna.
Para além desse painel principal que conversa sobre lendas morais costurando a trama às suas próprias intenções metafóricas, Mizoguchi tem inúmeros outros interesses com sua obra (como um todo e aqui também, em particular) e o papel social em situação de gangorra é bem destacado aqui. A família protagonista do longa não somente é destacada socialmente como vive em situação de poder dentro do universo do feudo. Caem em desgraça quando o patriarca se revela de outro extrato interior, sinalizando compaixão pelas classes menos favorecidas. É nesse momento que o filme revela sua intenção humanitária, porém principalmente questionadora, porque o status quo era mantido graças à indiferença.
Através dessa derrocada, o diretor propõe um jogo onde a fábula se comunique através de si mesma e seja observada internamente em sua matriz. É montado então a segunda parte do roteiro, que idealiza o momento preciso da criação imemorial da base de uma lenda em sua representação gráfica. Em tempo, lenda: 'narrativa de caráter maravilhoso em que um fato histórico se amplifica e transforma sob o efeito da evocação poética ou da imaginação popular', de acordo com a definição do dicionário. Mas são exatamente essas bases literais empregadas por Mizoguchi no universo que ele desenvolve, trazendo honestidade e naturalismo para o seu barroco narrativo.
O conflito de classes exposto no filme não apenas reverbera na sociedade como também no cinema de hoje, que retoma uma tradição de militância. No entanto, a forma como o diretor equilibra esse viés em sua obra não esbarra em nenhum momento em camadas panfletárias, utilizando apenas a força das imagens e o impacto das atitudes não-explicitadas para abrir o olhar sobre o abismo que separa dominados e dominantes. Ao mesmo tempo em que trata com sutileza narrativa essa abordagem, o filme não se furta em separar o certo e o errado, até borrar essas fronteiras com o personagem Zushio, residindo nele a força da contradição de um homem dividido entre quem foi e quem precisa ser.
Sobre Zushio, Mizoguchi demarca um outro olhar em sua obra com esse personagem, o indivíduo enquanto produto do seu meio. Nascido em outra casta, ele e sua irmã Anju chegam à condição de escravos realçando diferenças em suas personas. Enquanto ela permanece dócil, seu irmão criou uma carcaça dura que o coloca em posição equiparada a seus algozes. Zushio se torna o que deveria combater por tanto sofrer o que tanto comete hoje - uma clara projeção dos maus tratos contínuos pelo qual toda sua família enfrentou. Em resposta à tamanha crueldade (que o filme mostra com sinceridade rara pra época), uma nova personalidade surge bloqueando a real, que volta a aflorar diante de uma fuga possível se concretizar. Zushio parte, então, para uma terceira via social, uma espécie de justiceiro em busca de uma reconstrução que talvez já não seja possível.
Com um apuro técnico invejável para o período e ainda impressionante hoje, os filmes de Mizoguchi tradicionalmente já contam com profunda compreensão do espaço cênico e exploração do mesmo com muita propriedade, além de absoluta co-relação entre o material filmado e o narrado. Em 'Sansho' não é diferente, e o filme parece absorver o clima de cada passagem, sendo mais seco e contemplativo no breve prólogo onde a família central ainda não caiu em desgraça. Pós eventos que desencadeiam a trama, os planos passam a correr pelos espaços abertos de maneira nervosa, até febril em determinadas passagens. Paralelo a isso, o processo de perda de sanidade pelo qual alguns passam é filmado em atmosfera etérea, descolados da realidade como evidentemente estão.
Como compreende cada aspecto de sua carpintaria sem perder o aspecto humanista sobre o universo em questão, o mestre japonês retrata sua narrativa sem reverenciar o período, entendendo sua fatia de importância histórica, mas para isso não teria como deixar passar a devastação psicológica que o período trouxe à humanidade. Através dos lamentos entoados por Tamaki a respeito da própria história, Mizoguchi filma sua visão melancólica da História, através das lendas que ampliam o repertório de sangue e dor que o Japão viu correr através dos tempos.
Texto integrante do especial Baú dos Clássicos
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