7,5
O cineasta Ziad Doueiri consegue um feito raro hoje em dia. Ele vem desde o Festival de Veneza apresentando seu longa O Insulto e mostrando essa habilidade que nem todo autor consegue domar no cinema contemporâneo. Doueiri tem uma visão aguçada sobre o seu mundo, que não é qualquer mundo. Nascido no Líbano, o diretor está em seu quarto longa, mas antes de qualquer coisa viu a realidade conflituosa a sua volta e cresceu em contato com ela. Com isso, provavelmente foi testemunha de eventos parecidos com o que narra aqui, com a experiência de quem foi assistente de Quentin Tarantino em seus longas dos anos 90, Cães de Aluguel, Pulp Fiction - Tempos de Violência e Jackie Brown - escola melhor, poucos poderiam ter. Assim sendo, o diretor conseguiu unir uma linguagem ágil, um conceito de ritmo adquirido em anos de experiência nos EUA, a uma narrativa que não teria como acontecer em qualquer outra parte do mundo que não aquela, tão imersa em particularidades da região a ponto de criar um incidente assim.
O filme observa dois homens, o libanês Toni e o refugiado palestino Yasser, em uma espiral de desacertos que levam a uma situação diplomática desastrosa e que compromete a paz entre os povos, literalmente. Yasser trabalha numa empreiteira que presta serviços a um deputado consertando logradouros da cidade. Toni é um mecânico que mora numa dessas ruas, com uma varanda ilegal. Lavando esse espaço, Toni deixa cair água suja em Yasser, que se propõe a consertar sua calha, no que é negado pelo mecânico. Mesmo assim ele toma a liberdade de consertar, conserto esse destruído pelo próprio beneficiário do mesmo. Assustado e revoltado, Yasser dispara as palavras que vão mudar as vidas de ambos e de todos a sua volta: "seu babaca de merda!". A partir daí, um efeito dominó de acontecimentos absurdos, extremos e cada vez mais graves vão minando a paz das duas famílias até levar todos aos tribunais, em situações que não cansam de surpreender cena a cena.
Com o domínio de linguagem adquirido em solo americano, Doueiri parte para aprimorar seu riscado com uma narrativa específica que só poderia ser escrita na sua região do mundo, um lugar onde atos corriqueiros podem sim se transformar em transtornos diplomáticos. Diferente de outros filmes com agilidade no ritmo a ponto de empolgar qualquer público, a trama de O Insulto só faz sentido ambientada entre palestinos e libaneses cristãos mesmo, por conta das situações que começam a desembocar em resultados cada vez mais graves. Unido a valores de produção impecáveis e uma condução afiada, o filme justifica o lugar de destaque que ocupou nessa temporada com sua sedutora cadência na montagem e com os belíssimos planos conseguidos por Tommaso Fiorilli (que também está em cartaz nos cinemas na luz de De Volta), que aliado a experiência que o próprio Doueiri tem em fotografia - sua função original no set era essa - e o longa acaba adquirindo um visual de encher os olhos mesmo.
Apesar de tudo, se o filme tem algum ponto fraco, esse é colocado em quatro mãos, as do próprio diretor e também Jouelle Touma, os roteiristas. Ao mesmo tempo que apresenta uma espécie de flerte com a excelência na cadeira de diretor, é graças ao rocambolesco de seu texto que o filme alcança admiração. Só que essa estrutura de viradas dramáticas constantes trazem ao mesmo tempo emoção ininterrupta ao todo e também exige desse material um estofo crescente de motivações, desdobramentos e ressignificações de personagens, e um escopo cada vez mais ampliado de concentração que o filme não consegue abraçar, de tamanha são as intenções de alcance do longa. Não há trabalho mal feito no que está em cena, talvez o maior problema é que faltem elementos que deixariam o filme com o acabamento ideal para mover seu filme do lado do entretenimento para um resultado mais ambicioso e até merecido, dado o talento e a entrega da parte técnica e pela consciência de estarem fazendo um produto acima da média.
O enorme elenco se não é agraciado com a totalidade de desenvolvimento de seus personagens, ao menos retribui com o que lhe é oferecido da melhor maneira possível, em desempenho uniforme na qualidade. Premiado em Veneza como melhor ator, Kamel El Basha constroi seu Yasser com uma contenção que o opõe ao explosivo Toni de Adel Karam. Ambos elevam a temperatura com seus desempenhos, mas o festival italiano acertou na escolha do premiado. Um personagem mais introspectivo e ensimesmado, Yasser tem um potencial de identificação popular maior, que verá nele um lado seu ligado à justiça e à resiliência, sem nunca se curvar; a interpretação silenciosa de El Basha o eleva. Esse viés mais popular que fará o público vibrar, essa linguagem mais universal de O Insulto não o torna inferior, muito pelo contrário, a comunicação popular do filme o eleva quando percebemos as lacunas que o roteiro deixou. É através dessa linha de aproximação com o público que o filme acaba elevando sua média final.
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