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Críticas

Cineplayers

Uma mulher é um país

8,5

Luísa está em uma encruzilhada. Em 1979, sua vida parece intrinsecamente ligada ao seu passado, de maneira metafórica ainda mais que real. Produto da sociedade que sobreviveu à ditadura, Luísa é uma mulher casada com uma história nebulosa de envolvimento com a luta armada. Viu pessoas morrerem, e talvez isso a tenha feito perder seu grande amor. No tempo presente, ela e Luis Antônio são pais de Sandrinha e a novidade do casamento já acabou. Ela quer e precisa (só ainda não sabe no começo do filme) cruzar essa encruzilhada, onde se encontram o futuro, o passado e um presente, nenhum deles com promessas confiáveis.

No campo do presente encontra-se sua família, cujo afeto não parece ter sido construído e está ruindo diariamente. No campo do passado, está a volta de Marcos, um amor que está prestes a ganhar uma segunda chance. No campo do futuro, o encontro quase casual com Lula, um homem mais jovem que representa um ar puro no momento de crise. Luísa produz desconforto com sua situação, porque não sabe muito bem que rumo tomar, nem consegue produzir um pensamento coerente a qualquer que seja seu interlocutor - a tal mulher casada do título está em processo de autoconhecimento, e nesse sentido nenhuma das saídas apresentadas será a segurança pelo qual ela clama.

Alberto Salvá constrói na aparente simplicidade de seu melodrama uma rica observação sobre a sociedade acordando na ressaca da ditadura, com um grupo de pessoas que possivelmente passaram ao largo desse momento graças às suas estratégias de ascenção pessoal, mas que tem em sua protagonista um ponto de virada dessa mesma ressaca. Especialista em se afastar de uma violência que a persegue, Luísa viu a queda dos ideais revolucionarios de camarote, se refugiando num casamento conveniente para criar uma sensação de controle. Quando a ameaça do descontrole volta a espreitar, o primeiro impulso de Luísa é organizar nova saída estratégica; quando a explosão interna começa a emparelhar com a externa, Salvá coloca sua protagonista novamente em rota de fuga.

Ainda que consiga desvencilhar-se da violência que sempre se emparelha a ela, Luísa não sai de suas guerras sem feridas, tanto no passado quanto no presente, e talvez isso seja o definitivo que a coloque em sua eterna busca pelo futuro melhor. Se as experiências traumáticas pelo qual o país passou estão marcadas de maneira indelével em sua pele, também seu psicológico estará eternamente depauperado. Nisso reside a incapacidade de Luísa em se relacionar, seja com os homens da sua vida, seja com as mulheres. Afastada dos códigos de afeto, ela submerge cada vez mais em questões pessoais e intransferíveis, abandonando qualquer resquício de empatia com quem não seja ela mesma. Com coragem de abarcar uma personagem que escolhe a si mesma dentre todas as coisas, Salvá tem no foco ultra centralizado a possibilidade de debater aquela mulher e todo o projeto de sociedade que se tentou construir, com insucesso.

Rígido em seus cortes abruptos e em suas marcações territoriais, o diretor monta com brilhantismo essa narrativa de análise de perdas, principalmente em sua reta final. Luísa constantemente passa a realizar tarefas tidas cotidianas de maneira ininterrupta e mecânica: ligar de orelhão, passar a marcha no carro, olhar placas, tudo isso em looping constante para demonstrar o turbilhão de emoções do qual aquela personagem já convivia há pelo menos 10 anos. Em busca de uma liberdade de gênero, Salvá coloca sua protagonista mais uma vez na rota do sonho e da possibilidade, e que o futuro traga pra ela enquanto indivíduo o que não trouxe para seu país.

- Visto no 13º CineBH 2019

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