Em 1964, Henri-Georges Clouzot (O Corvo, O Salário do Medo) recebe sinal verde, 150 pessoas à sua disposição e um “orçamento ilimitado” para filmar L’Enfer, suspense psicológico sobre um homem de meia idade (Serge Reggiani) que desenvolve um ciúme doentio por sua jovem esposa (Romy Schneider). Após 3 semanas de testes estafantes, brigas e desistências que culminaram em um ataque cardíaco do diretor, o filme é arquivado e fica sem ser visto por ninguém durante 45 anos, até que um encontro ocasional num elevador com a viúva do diretor dá origem à idéia para um documentário sobre as lendárias filmagens.
O motivo para O Inferno de Henri-Georges Clouzot falhar em quase tudo que se propõe talvez esteja lá no início do projeto, quando Bromberg e Medrea tomaram a ingênua decisão de respeitar a cronologia das filmagens de 64 na estrutura da narração (primeiro a fase de testes, depois as tomadas no lago), o que termina agindo como antítese dessa mesma narrativa. Porque o objetivo de O Inferno... é contar duas histórias: de um lado, os mitos e os pormenores por trás das fabulares filmagens; de outro, o próprio filme jamais visto pelo público. E isso ao mesmo tempo. O problema é que já há um molde natural que se impõe sobre qualquer malabarismo que os diretores poderiam realizar para alternar estes dois contos do “Inferno de Clouzot” de forma orgânica.
Deste modo, o documentário segue engessado por uma narrativa imaleável que o divide nitidamente em duas partes. A primeira delas é recheada de entrevistas cheias de informações ou irrelevantes ou que pouco agregam ao objeto de maior curiosidade para o espectador: o próprio Clouzot. Falta o que há de mais básico, uma noção de cotidiano, qual era o comportamento do diretor, de Reggiani, de Schneider; qual a dinâmica entre Clouzot e a equipe, quais as histórias, os fatos notórios, as lendas, as brigas? A impressão que fica é de que todos os entrevistados tinham muito mais para falar do que efetivamente é dito diante da câmera; em caso contrário, significa que não havia então, por trás de toda a fama da produção de L’Enfer, material suficiente para justificar um documentário.
Talvez pelo deslumbramento do acesso a um material tão precioso, Medrea e Bromberg tenham julgado que qualquer pesquisa mais meticulosa ou qualquer maior cuidado na hora das entrevistas seria mero capricho diante do tesouro de 185 latas e 13 horas de imagens inéditas (que, também pela negligência, terminam mesmo como único objeto de interesse).
A segunda parte (e esta quebra de ritmo é sentida com clareza em torno dos 50 minutos) supre um pouco do interesse despertado pelo próprio filme inacabado de Clouzot. Os diretores dispõem cenas inteiras e em ordem, abrindo passagem para um outro mundo em que o L'Enfer tivesse acontecido enquanto filme, porém preenchendo as lacunas deixadas pelas cenas não filmadas com dois atores que reinterpretam em estúdio os diálogos originais, e este é outro sério problema. Talvez por terem sido julgados de igual importância texto e imagem em L’Enfer (já que os diálogos foram escritos por Clouzot), ou então por uma tentativa fútil de evitar que o espectador se perca na trama de um filme que sequer existe, cada linha de texto que sirva de conexão entre uma cena e outra e que não foi filmada por Clouzot, é por sua vez filmada por Bromberg e Medrea.
São pelo menos uma meia-dúzia de cenas que nada podem interessar a um espectador que busca no documentário uma janela primeiro para o processo de produção de L’Enfer, depois para o trabalho de direção de Clouzot (ou seja, apenas o que Clouzot dirigiu, não o que dirigiram dois documentaristas quaisquer, com todo o respeito). A importância dada ao texto é algo injustificável e fora de proporção, até porque Claude Chabrol tratou de filmar o roteiro deixado por Clouzot em 1994, em Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo (fato que é cuidadosamente ocultado pelo doc).
Não há um senso de unidade em O Inferno.... Além de os dois objetivos do documentário não funcionarem juntos, acabam entrando em conflito e praticamente anulando um ao outro, exterminando todas as chances de mérito para qualquer trabalho exposto no documentário que não tenha sido - e isso é até engraçado de se dizer - do próprio Clouzot.
Fique claro: é válido assistir a Inferno única e exclusivamente pela recuperação do material deixado pelo diretor francês, e que é belíssimo. Há uma que outra tolice (afinal eram “testes”), mas o saldo final é deslumbrante. Principalmente se você pensar em termos de Romy Schneider. Semi-nua. Do auge dos seus 26 anos, mesmerizante, doce mas erótica ao mesmo tempo, de uma beleza objetiva, inacreditável, Schneider é das paisagens mais sobrenaturais já captadas pelas lentes de uma câmera. E é quando até a loucura fica plausível. Porque se Clouzot gastou rios de dinheiro, tempo de 150 profissionais, desenvolveu novas técnicas de iluminação, de manipulação das formas e das cores, e terminou sofrendo um infarto apenas para tentar deixar Romy Schneider um pouco mais bonita (e falhando miseravelmente, por óbvio), então L’Enfer - com seus excessos, a obsessão, a total falta de contato com a realidade - passa de repente a fazer todo o sentido do mundo.
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