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Críticas

Cineplayers

Poesia da inclusão multicolor.

10,0
Não é de hoje que Guto Parente é o 'melhor cineasta sem tela' da atualidade. Onde já se viu alguém parir dois filmes geniais como A Misteriosa Morte de Pérola e O Estranho Caso de Ezequiel e não conseguir distribuição nem lançamento? Ele lançou esse ano, a começar por Rotterdam, seu Inferninho, dele e de Pedro Diogenes, dois dos caras mais fascinantes do cinema brasileiro na atualidade, e o filme é a prova cabal dessas afirmações que o precedem. Oriundos e ainda parcela importante da Alumbramento, que escancarou as telas há quase 10 anos atrás com Estrada para Ythaca, Guto e Pedro são hoje artistas maduros que conseguem conceber algo tão impactante do ponto de vista político quanto também do ponto de vista carinhoso. Nem sempre (ou quase nunca) a fórmula escancarada de dizer o que se pensa é a melhor maneira de fazê-lo. Os dois juntos não apenas potencializam o que tem de mais genuíno como também viram aflorar um sentimento coletivo de conexão com o próximo, o cúmulo da empatia registrada em audiovisual.

O filme parte da história do local do título, reduto de desgarrados que se amparam entre aquelas paredes cinzas, dando cor ao espaço com sua aparente apatia cítrica. O lugar pertence a Deusimar, que comanda aquela 'família' com punho de ferro. Ali um dia chega um marinheiro que imediatamente se aproxima dessa mãe de todos e vive com ela uma história de amor e paixão tórridos. Tudo vai na mais absoluta tranquilidade até a chegada de dois 'mensageiros da morte', representados por um porta-voz do governo a comunicar a desapropriação do terreno, e por uma dupla de parceiros de mar de Jarbas, o marinheiro, a cobrar dele uma dívida. Estabelecido o conflito, é chegada a hora de desenvolver também os coadjuvantes que circulam a família desfuncional que habita o espaço, e terem todos função narrativa e dramática muito bem demarcada.

É reconhecível que o espaço do afeto seja um dado de Guto, assim como cabe a Pedro a virulência social e política. A partir da união desses olhares que trabalham em grupo há tantos anos, o Festival de Brasília foi assolado pelo filme talvez mais inusitado da  safra 2018, assim como também o mais emocionante e cálido. A luz de Victor de Melo acentua o caráter emotivo do longa, com seus acentos quentes em rosa, amarelo e vermelho, que seguem aquecendo para além da sessão. Com uma compreensão íntegra do projeto, os autores fizeram de sua equipe artística um time imbatível que responde por uma direção de arte mais seca (de Tais Augusto), em contraste com a própria fotografia e os figurinos espetaculares de Felipe Arara e Isac Bento. A identidade visual do filme como um todo não apenas é um acerto como tem o poder de nos carregar para aquele universo, que é um sonho sobre a realidade possível e querida por tanta gente, diria até ansiada. Esse mergulho em um Shangrilá com gosto de 2018 é uma das melhores sensações proporcionadas por essa edição do festival. 

Também a montagem de Victor Costa Lopes realiza mágica com as imagens cedidas pela dupla de diretores. Com uma miríade de personagens para apresentar e ao menos três linhas de pensamento correndo em paralelo a dialogar mutuamente, é uma vitória o que é conseguido por Victor, dando coesão, ritmo e respeitando o tempo de cada cena, a inflexão de cada momento, a realizar seus precisos cortes. O filme consegue ser extremamente humano, extremamente verdadeiro, extremamente simbólico e extremamente alegórico, em igual medida e com beleza também extremada. O roteiro do filme a seis mãos (além de Guto e Pedro, também Rafael Martins) é também ele uma soma do que compor, como compor e como apresentar essa história que parece tão simples e pequenina da forma mais exuberante e cheia de camadas possível, sem jamais esquecer nenhuma. O desfecho em particular é uma prova das capacidades de pensamento coletivo em articular algo precioso com concisão e abrangência, ao mesmo tempo.

Os diálogos providos pelo roteiro transformam aquele grupo de atores, que essencialmente já são espetaculares por si só, mas encontram nas palavras de Guto, Pedro e Rafael momentos únicos. Demick Lopes, Samya de Labor, mas especialmente Yuri Yamamoto e o próprio Rafael Martins estão em um patamar que a competitiva oficial não encontrou eco; a cena que ambos protagonizam, basicamente um monólogo do Coelho vivido por Rafael para a Deusimar de Yuri, sai de Brasília sem qualquer par. Isso tudo é conseguido por esse conjunto perfeito de cada uma das categorias particulares de 'Inferninho', que fazem do longa de Guto e Pedro uma experiência imersiva, um produto reconfortante e o filme mais completo dessa edição. Um filme que ainda encontra espaço para a política não-panfletária, um grito pró-diversidade e uma prova de que o radicalismo também pode ser doce. 

Filme visto no Festival de Cinema de Brasília

Comentários (1)

Lucas Aragão | quinta-feira, 20 de Janeiro de 2022 - 19:17

O que seria do amarelo se todos gostassem do roxo?

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