Uma experiência contra qualquer interpretação.
Quando “Cidade dos Sonhos” (2001) foi lançado por aqui, lembro-me perfeitamente de uma estratégia de marketing da distribuidora para chamar a atenção do público: tratava-se de um quiz composto de dez questões sobre seqüências as mais nonsense do filme, com o intuito de incitar no espectador a curiosidade de fechar uma interpretação de seus vários sentidos obscuros. Antes da exibição, eram entregues flyers contendo o questionário, como um mapa da mina para guiar a assistência. Tal procedimento justificava-se pela singularidade do novo trabalho de David Lynch, que trazia elementos ainda mais radicais ao imaginário de fábulas bizarras constituído por suas obras anteriores – a narrativa obedecia à lógica da linguagem dos sonhos e, portanto, não podia ser apreendida segundo critérios de linearidade ou de verossimilhança. Para que o espectador não se sentisse completamente por fora, pelo simples fato de estar desacostumado a ver histórias desse tipo, o quiz servia para estimular uma recepção mais aberta ao filme. Mesmo que para tanto tivesse que se valer de um recurso clássico de forçar a busca por sentidos e mensagens, o conteúdo debaixo de uma forma (no final, o tiro saiu pela culatra, pois apenas os fãs de Lynch entraram na brincadeira, o que acabou por reforçar a aura de cult e inacessível do diretor).
Agora, no lançamento de “Império dos Sonhos” (2006), não se repetiu a mesma política de marketing. Muito provavelmente porque o próprio Lynch tenha afirmado, em depoimento sobre o filme, que ele mesmo não conseguia fechar sentidos coesos para o longa. Se “Cidade dos Sonhos” já era fortemente onírico, “Império...” é muito mais. Uma experiência ainda mais extremada, dificilmente redutível a respostas a uma dezena de perguntas. Mas será que isso significa um filme aleatório, sem pé nem cabeça? Que Lynch quis tirar uma da nossa cara?
Contra a Interpretação
Definitivamente não. Com sua declaração, Lynch mirava não apenas o público convencional, acostumado a ir ao cinema munido de esquemas cartesianos (leiam-se conservadores) de compreensão, como também a sua horda de admiradores, para que parassem com suas viagens interpretativas. Afinal, quando o assunto é sonho, estamos diante de uma forma de comunicação e linguagem que não admite domínio nem direção conscientes, tampouco sentidos unívocos ou coerentes. Cair tanto num jogo de interpretação convencional quanto em excessos de associações delirantes significaria rejeitar a própria razão de ser de “Império dos Sonhos”. Seria como reduzir um gigante a um anão, apenas para evitar o incômodo de não se saber como lidar com o gigante.
A ensaísta e crítica de arte norte-americana Susan Sontag já havia escrito em 1964 um artigo intitulado “Contra a Interpretação”, alertando justamente para os riscos de asfixia de uma obra de arte causados pela profusão de interpretações produzidas pela modernidade ocidental. Nas palavras da própria Sontag, “numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte” (há uma edição brasileira desse texto, editada pela L&PM em 1987). Para ela, seria fundamental que o apreciador de uma obra de arte tenha os sentidos livres e, portanto, apurados para simplesmente ver e ouvir a coisa em si.
Especialmente no caso “Império dos Sonhos”, as idéias de Sontag possuem um valor ainda mais apropriado, uma vez que qualquer esforço interpretativo, além de exaustivo – são três horas de projeção – mostra-se inútil. Ou a narrativa impõe-se como experiência sensorial, ou ela simplesmente não se impõe. E aí ficamos presos do lado de fora, sem possibilidade de entrada. Melhor levantar e ir-se embora.
O Rigor dos Sonhos
As descobertas do Dr. Freud significaram passos largos na expansão do conceito de razão. Inseriu-se nele o inconsciente, uma esfera da mente humana que não opera segundo os procedimentos convencionais de racionalidade usados para avaliar as ações humanas em seus meio e fins. Freud, seus seguidores – e hoje os desenvolvimentos das neurociências – demonstraram que não há coerência nem eficiência, e nem ética, quando se fala de inconsciente (pelo menos não esses valores tais como conhecemos usualmente). O que existe é um quarto de despejo, de lembranças e experiências recalcadas, a contrabandear para o lado de cá da consciência conteúdos cifrados capazes de burlar a interdição na zona de fronteira. A forma de contrabando: os sonhos. Por isso a falta de controle sobre eles; por isso eles a estrutura baseada em códigos complexos e rigorosos, variáveis de pessoa para pessoa, só decifráveis por uma incessante reinvenção via fala e escuta – psicanálise – ou através da arte. Em ambos os casos, as interpretações são tão infinitas quanto efêmeras, feito bolas de sabão. Elas se formam, e logo explodem; outras se formam, mas também se extinguem rapidamente. E assim seguimos nos liberando pouco a pouco de nossas fontes de sofrimento.
“Império dos Sonhos” trabalha com o mesmo rigor de seu objeto. A narrativa interpola vários níveis distintos de tempo e espaço, confundindo-os, conectando-os uns com os outros – há a fábula polonesa, maldita; o primeiro filme, inspirado nela, também maldito; a tentativa de refilmagem, amaldiçoada; a conturbada vida amorosa da protagonista da refilmagem, vivida por Laura Dern; a expiação da indústria do cinema e do star system (aqui a relação com “Cidade dos Sonhos” é estreita). Tudo isso confundido e misturado acaba por produzir outras imagens autônomas – como as seqüências das figuras humanas com cabeça de coelho –, e o filme poderia durar indefinidamente. Lynch, porém, põe um ponto final no jorro de sonhos, na medida em que a confluência entre eles produz uma libertação catártica tanto dos personagens quanto do espectador. Sem saber exatamente como nem porque, compartilhamos todos de um grande alívio. A experiência cinematográfica como psicanálise na veia. Ou melhor, como arte na veia. Só que em vez da montanha-russa de “Tropa de Elite”, um longo e sinuoso trem fantasma...
Excelente crítica! De todos os filmes do Lynch, esse é o que se apresenta mais inserido em sua proposta onírica e surreal(acho que essa não seria a palavra mais apropriada para o universo lynchiano, mas na falta desta...). Como foi bem colocado, não é um filme que busca ser compreendido por meio de análises, símbolos e/ou verossimilhança. Está mais para uma terapia do próprio Lynch buscando expurgar seus demônios, refletindo para nós, espectadores, a identificação de semelhantes horrores que residem em nossa psique. Fantástico.
Baita crítica, de um filme onde realmente essa contextualização se faz necessária! Perfeita a comparação entre a estrutura do filme e a estrutura dos sonhos e do subconsciente. E bela citação ao artigo “Contra a Interpretação”, que parece bem interessante. Vou procurar essa edição da L&PM. Valeu mesmo!!