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Críticas

Cineplayers

O horror além do filme.

7,0

As recentes manifestações sociais nas ruas do Brasil e seus desdobramentos levantam, entre tantos tópicos de maior importância, uma pertinente discussão sobre a intervenção da câmera no mundo – especialmente em sua atual condição de acesso democratizado, com a abundância de produtos que contém este dispositivo em custo acessível para boa parte da classe consumidora. Antes de seus fundamentos artísticos, que a integram à lista de invenções com as quais o homem reconstitui sua própria realidade (com início nas pedras lascadas, passando por pincéis, instrumentos diversos ou o próprio corpo), encontramos pela câmera cinematográfica uma crueza que é possível somente nela; um olhar frontal e implacável para o que move o mundo, ou o que se movimenta através ele.

Estejam na televisão ou na internet, sejam de um aparelho celular de R$ 20 reais ou de uma câmera de R$ 50 mil, o que não se pode questionar é, substancialmente, a força que a existência destas imagens demonstra a cada ocorrido – nos que se passaram e nos que ainda se sustentam em algumas cidades do país, onde civis, movimentos organizados e classes políticas buscam, cada qual, lutar por suas verdades. Se, como as manifestações de arte anteriores ou posteriores às invenções modernas, a câmera de cinema sempre estará suscetível a todo tipo de manipulação, é neste instante uma preocupação de segunda ordem. À parte de qualquer fundamento moral, do cinismo e da política, cabe aqui, inicialmente, mencioná-la em sua condição mais intrínseca; afinal, ao que dela não escapa, ao que se permite preservar através dela para o futuro, permanecerá a incontornável existência do registro.

Chegando a este ponto futuro, o retorno ao passado pode nos mostrar que, enquanto não existir a câmera, faltarão imagens e visões e, portanto, também poderão faltar verdades. É desta ausência que parte o documentário A Imagem Que Falta (L’Image Manquante, 2013), do cambojano Rithy Pahn, que com base no livro L’Emination, de Christophe Bataille, desdobra-se para viabilizar maneiras de apresentar ao público um dos mais traumáticos episódios da história do Camboja: o genocídio popular durante a gestão Khmer, na década de 1970, quando mais de 2 milhões de pessoas (incluindo a família do diretor, ainda em sua infância) foram mortas em decorrência das precárias condições de vida do país durante o malfadado regime comunista de 75-79.

Temos em A Imagem Que Falta uma questão primordial que conduz o filme: como retornar à história e projetá-la em tela sem um acervo de imagens para sustentá-la. A opção de Pahn é contornar este vazio através de uma operação que integra ao cinema outra perspectiva narrativa de forte poder de reflexão, promovendo uma imersão neste passado por meio da reinvenção. Se o ato de reencenar raramente é integrado à técnica documental, este e outro impressionante filme do Festival do Rio 2013, O Ato de Matar (The Act of Killing, 2013), nos mostram que também existem vias para se retornar a um passado recente ignorado pelas câmeras – ou ocultado delas – através da reconstituição da arte, em duas operações que procuram, com maior ou menor precisão, ressuscitar horrores da história do século XX.

Para dar corpo a esta operação, Pahn apresenta uma minuciosa composição de ações com bonecos de argila, que reproduzem situações do período de quatro anos em que o país esteve submetido ao regime Khmer. O voice over que costura a narrativa não esconde o caráter pessoal do filme, projetado em torno de lembranças e da angústia com a qual Pahn, cuja juventude o manteve diretamente envolvido com o cinema do país (produção restrita a estúdios cinematográficos e à narrativa de ficção), retorna a esta história. O diretor apresenta-se sem receios como sobrevivente e ao mesmo tempo vítima da tragédia e busca impor sua visão particular para discutir as condições socioeconômicas e políticas do período e suas inflexões na vida e na morte dos cambojanos. 

Em meio às reconstituições, as poucas imagens de arquivo descobertas pelo cineasta durante seus anos de pesquisa permitem que se acessem alguns registros impressionantes da vida daquele período (as mais intensas guardadas cuidadosamente para o ato final) – e, nos abismos e sobressaltos, que se imagine o que de pior aconteceu distante do olhar da câmera. É nestes vazios que o filme encontra um impacto duro e se impõe sobre sua própria capacidade de retomar a história através da arte – que, apesar de interessante em alguns momentos, supera em poucas sequências a sombra do que não é mostrado. Ao final, enquanto vemos um boneco ser coberto de terra durante a encenação de um enterro, a falta dessas imagens provoca uma estranha e contraditória sensação de lamento pelo que não se pôde registrar – e até mesmo alterar – na história com a ausência da câmera e de conforto por, sem ela, sermos poupados de confrontar o pior horror.

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