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Críticas

Cineplayers

O caos controlado de Wes Anderson.

8,0
Wes Anderson sempre foi um cineasta que construiu seu olhar em cima da transmídia (outras mídias associadas com o cinema) e do intertexto (o diálogo de seus filmes com os de outros). Ao invés de existir em uma ilha em uma produção quase artesanal, o cinema autoral do texano existe em uma megalópole, onde o oceanógrafo Jean-Jacques Costeau, o escritor Stefan Zweig, o cantor folk Elliott Smith e muitos outros, de Seu Jorge a Max Ophuls, coexistem em um universo de filmes que já citou cada um deles - mas ao contrário de tantos outros conterrâneos, jamais foi criticado por ser “xerox” de outro - talvez apenas por ser “si mesmo” demais, como um samba de uma nota só.

Anderson sempre quis filmar do jeito que filma em Ilha de Cachorros, sua segunda animação após O Fantástico Sr. Raposo, mas nunca filmou assim tão intensamente desde o início dessa década, em obras como Moonrise Kingdom e Grande Hotel Budapeste. Os Excêntricos Tenenbaums decerto consagrou esse estilo, mas ainda estava mais para Três é Demais do que para a fase mais recente. Os detratores devem ter perdido a paciência de vez com o que acusam de estilização vazia, pretensiosa, para ganhar prêmios em festivais; os atraídos devem ter notado o quanto ao “filmar do mesmo jeito”, o cineasta continuamente se testa em caminhos não pavimentados, seja o coming of age em Kingdom, o drama de época em Budapeste ou a sensação de distopia social de Ilha de Cachorros.

Atraindo críticas por retratar o povo japonês de maneira estereotipada, o olhar estrangeiro de Anderson sobre essa cultura nos revela a cidade de Megasaki, que em meio a uma epidemia de gripe canina decide banir todos os cachorros da cidade para uma ilha de lixo, onde os animais abandonados e deserdados estruturam uma sociedade à beira da barbárie onde disputam pela comida que cai dos céus, dos teleféricos de sucata. 

E tudo muda quando surge Atari Kobayashi, sobrinho do prefeito, que veio até a ilha procurar pelo seu cão Spots, que lhe foi tirado à força. Enquanto as autoridades procuram o menino, o mesmo embarca na aventura de uma vida em uma ilha dominada por gangues caninas, habitada por cães-oráculos e corujas mensageiras e assombrada pela lenda de “cães radioativos canibais”. 

Contando assim parece que a epopéia de Atari calca-se em certo nível naquelas distopias da virada da década de setenta para oitenta, como The Warriors - Os Selvagens da Noite e Fuga de Nova York, ambos consistindo em um grupo renegado (por sua diversidade, senso de empatia e afins) que guiam uma figura vulnerável por um ambiente socialmente hostil. 
 
E não deixa de ser verdade, em certo nível: o diretor nos lembra constantemente que enquanto cães possuem personalidade e criam lealdade em meio a pior dos ambientes, as figuras de autoridade humanas são corruptas, mentirosas e malignas, controlando a população através de desinformação e discursos populistas inflamados, baseado no medo da assimilação. Em tempos conturbados na América, não é absurda uma possível interpretação de Anderson querer falar sobre a própria vizinhança imaginando uma terra estrangeira absurda e caricatural.

Mas se é o seu ambiente distópico, o é à uma moda Kill Bill: ainda estamos diante do mesmo Wes Anderson com sua frontalidade esquisita e composições simétricas, anti-naturais, que não quer dar uma ideia de mimetismo mas de construção, de algo propositadamente encenado e não recortado da realidade, mas faz isso gritando “intertexto” o tempo todo. Estão lá a estrutura épica de narradores e títulos dividindo a obra em partes, a trilha sonora tirada de Os Sete Samurais e Cão Danado, de Kurosawa, a temática Shakespereana de tio e sobrinho disputando o poder e até mesmo colocando indie rock americano em um filme que grita cultura japonesa o tempo todo. 

Como acontecia com Tarantino, Anderson nunca trabalha apenas com um gênero específico para saber o que esperar do seu filme: é o que funcionar dramaticamente para aquela cena, seja stop-motion de animais falantes, estruturas épicas, temáticas distópicas ambientação samurai ou música moderna, é papel do diretor fazer funcionar e dar um sentido àquele mundo e àquela miríade de referências que em um primeiro momento só fazem sentido em sua cabeça. 

É claro que esse cinema “radicalmente pessoal”, que usa e abusa de todos os recursos estilísticos de composição pictórica possíveis, pode nem sempre fazer sentido aos nossos olhos. Algumas cenas podem parecer deslocadas ou esquisitas demais. Mas no todo Anderson soube orquestrar um senso de crescendo na história de busca de Atari e na história de redenção do vira-lata Chief que carrega em seu clímax um tom de recompensa/catarse emocional para o espectador, ainda que embebido da típica ironia cínica e flamboyant de Anderson, que promove um caos controlado, hiperreferencial, mas sempre com seu típico controle cênico. 

Resumindo, um filme que a maturidade trouxe após os anos de ambição. Para o bem e para o mal, gostando ou não gostando, ninguém conseguiria filmar Ilha de Cachorros como Anderson o fez, não partindo só de uma temática própria mas também de um formalismo próprio, o que o confirma, mais uma vez, como um dos cineastas mais interessantes de nosso tempo.

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