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Críticas

Cineplayers

Um filme que funciona como documento histórico mostra as crueldades que acontecem na África.

8,0

Baseado em trágicos fatos reais, acontecidos em Ruanda em 1994, Hotel Ruanda consegue despertar sentimentos agudos, tais como revolta, desespero, agonia, entre outros menos óbvios. Como cinema, é um forte drama com interpretações muito sólidas e um roteiro bem firme, que tem a capacidade de abrir o coração dos espectadores para que estes se voltem à pobre África, o continente dos esquecidos. Há uma mensagem política bem direta, que funcionaria até para os dias atuais, contra os países ricos. Isso se, claro, estes se importassem. De qualquer forma é um filme de alto valor: o documento está criado, e qualquer um pode assistí-lo.

Aqui vale abrir um parágrafo para falar sobre a história. Normalmente fazer isso é uma perda de tempo imensa em qualquer crítica, mas aqui abro uma exceção. Estamos em 1994. Em Ruanda, há uma divisão entre o povo (embora sejam todos fisicamente muito parecidos, como destaca o jornalista vivido por Joaquin Phoenix em certa cena): os Hutus e os Tutsis. Os Hutus são a maioria, e quebram um acordo de paz para tentar "livrar o país" dos Tutsis, a quem chamam de "baratas". O ódio é total, e um homem, Paul Rusesabagina, gerente de um importante hotel, está no meio disso tudo, pois ele é Hutu e sua esposa, Tutsi. Ele utilizará o hotel para proteger órfãos e outras pessoas (centenas delas) ao mesmo tempo em que vê que a situação ao seu redor está se tornando cada mais mais incontrolável. Isso tudo aconteceu na vida real.

Hotel Ruanda não é exatamente material original. Pode-se definí-lo, a grosso modo, como uma mistura de A Lista de Schindler (1993) com Os Gritos do Silêncio (1984), que também tratavam de genocídios e, no caso do filme do diretor Steven Spielberg, tinha um herói anônimo (àquela época) que acabaria salvando muitas pessoas da morte. Tais semelhanças não tiram a força do filme, por ele ter personalidade e situações fortes por si mesmo, e funcionar como documento histórico de importância ímpar.

A força artística do filme reside, sobretudo, na excepcional interpretação de Don Cheadle (que teve a felicidade de, no mesmo ano, estrelar dois dos melhores filmes da época, já que participou de Crash - No Limite também). Acostumado sobretudo a papéis intermediários, ele quase não conseguiu participar deste filme, já que o estúdio estava pressionando o diretor Terry Jones (seu segundo melhor filme - já que Hotel Ruanda é o primeiro - é Em Nome do Pai) a ter alguém como Denzel Washington ou mesmo Will Smith no papel principal. Ficou melhor assim. Por não ser tão conhecido, não possui muitos maneirismos e estilos conhecidos pelo público, o que iria atrapalhar sua concentração no principal: a história. Cheadle teve um trabalho complicado, ele é o centro de muitos acontecimentos no filme todo - e nenhum deles foi exatamente leve de se viver.

Quem está um tanto quanto estranho no elenco é Nick Nolte. Interpretando um Coronel da ONU, o ator parece meio deslocado do resto do elenco, suas expressões são sempre as mesmas, o que acaba aborrecendo um pouco. Pelo menos não prejudica o filme, já que sua história é muito mais importante que a força de seu elenco. No geral, a produção foi bem cuidadosa em recriar seus personagens próximos aos reais, visto que houve um grande trabalho de pesquisa e entrevistas com os sobreviventes verdadeiros, incluindo Paul.

Há uma sensação agradável deste ser um filme de baixo orçamento. Saber que não serão vistas cenas de ação desnecessárias (Ridley Scott e seu Falcão Negro em Perigo que o digam) fazem o roteiro se voltar totalmente ao desenvolvimento dos personagens e tensão do cerco cada vez maior ao hotel. Porém ele possui seus exageros. Mesmo que não houve pressão de algum grande estúdio, o diretor (que ajudou a escrever o roteiro) opta, em muitos momentos, por atalhos fáceis para conquistar o espectador, como estereotipar demais os generais ou soldados Hutus, tornando-os vilões unidimensionais. Detestar o inimigo, dessa forma, é uma tarefa óbvia e fácil para o espectador. Algumas cenas são carregadas de uma dramaticidade quase novelística, o que soa forçado. Outro filme recente sobre um massacre conseguiu fugir dessas obviedades: Domingo Sangrento. Isso, porém, eleva o nível de tensão e tornou esse filme muito mais pesado. Parte do público simplesmente detesta isso e necessita de fugas dramáticas para a violência exarcebada.

Hotel Ruanda é de enorme importância como denúncia e documento histórico (com certeza muitos conhecerão essa história somente agora) e como cinema é um filme muito bom, com ótimas interpretações e direção sólida (em nenhum momento esta se destaca, mas é eficiente ao extremo para lidar com o conteúdo do filme). O filme foi indicado a alguns poucos Oscars, mas não tinha força por ser pequeno demais para Hollywood, que preferiu dar o Oscar de melhor ator para Jamie Foxx, pelo insosso Ray, a escolher Don Cheadle. Tudo bem: hoje, mais de um ano depois, Ray está bem esquecido e Hotel Ruanda continua ganhando admiradores. A justiça tarda, mas não falha.

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