Uma sensação de mal-estar perpassa cada uma das imagens de As Horas Vulgares (idem, 2011). Contrapondo o que geralmente é visto em filmes que giram em torno de amizades, a estreia de Rodrigo de Oliveira e Victor Graize não canoniza a relação entre os amigos ali retratados, nem a compreende como solução para resolverem seus conflitos particulares com o mundo. Não se trata de celebrar a amizade, de compôr uma ilha autossuficiente em meio ao mar de concreto da cidade que habitam — uma Vitória noturna e soturna, negra e melancólica, regada a bebidas, cigarros e jazz —, e sim de compreender estas relações que se entrelaçam como um agrupamento necessário para a sobrevivência de todos. Esse grupo, se existe enquanto meio de lidar com o desamparo e a solidão, também constitui uma fortaleza que, embora essencial a essas pessoas, é quebradiça, e pode se estilhaçar a qualquer instante.
É a iminência da ruína, presente de forma intensa na relação de Lauro, o pintor em crise, com os demais integrantes do grupo, que faz de As Horas Vulgares um filme tão peculiar e provocativo — especialmente na cinematografia brasileira recente. Em termos de comparação, pode-se dizer que o longa está mais para A Mãe e a Puta (La Maman et la Putain, 1973), de Jean Eustache, ou para o cinema de Phillipe Garrel, influência mencionada pelos autores, do que para Os Monstros (idem, 2010) — talvez o longa sobre amigos que mais esteve em evidência no país recentemente. De Garrel, observa-se toda uma cartela de conceitos estéticos e de encenação, compondo uma mise en scène que se distancia dos padrões do cinema contemporâneo nacional. De Eustache, a sensação exasperante do filme como uma bomba a ponto de explodir, cercada de homens encarando o inferno frontalmente.
A atmosfera impregnada de melancolia do filme deve-se bastante às experências de Rodrigo e Victor com a cidade de Vitória, e à relação que construiu-se entre um e outro, entre ambos e seus amigos e entre eles todos eles e a cidade. A presença deste elemento autorreferencial permite ao filme uma entrega arriscada e latente ao drama dos personagens. As Horas Vulgares não se inibe de trabalhar suas questões e reflexões existenciais até um limite de composição poética que pode gerar abstrações incômodas a quem não se permitir uma entrega mínima ao filme. Os autores lidam tanto com as cenas mais silenciosas quanto com os diálogos entre seus personagens de forma passional, e esta pulsão dá aos principais conflitos do filme uma intensidade muito particular — a cena derradeira de Lauro é especialmente forte.
A cena, aliás, clarifica o grande trunfo da abordagem de As Horas Vulgares sobre este grupo. Se o filme trabalha suas relações sob uma espécie de simbiose (“Eu sou todos esses homens”, diz uma das meninas enquanto conversam sobre seus vários parceiros), o sacrifício de Lauro, cuja dor e desolação prevaleciam tal qual um câncer crescente neste organismo coletivo, se apresenta como tentativa de cura de uma doença que fazia o corpo padecer, como a amputação de um membro putrefato que aos poucos contagiava o restante. A opção do pintor pelo próprio sacrifício é a opção por seguir fazendo parte deste organismo não mais como doença, mas através do afeto e das memórias retidas, seja por experiências compartilhadas ou pela pintura deixada de herança no quadro pendurado na parede. A sensação de desconforto, entretanto, mesmo após a solução física, não parece se esvair. As pessoas podem ir e vir, mas o lugar que ocuparam, por bem ou por mal, permanecerá ali para sempre.
Visto na 15a Mostra de Cinema de Tiradentes.
Finalmente uma crítica realmente positiva! FINALMENTE!
Outras virao, Rodrigo. O ritmo aqui ta intenso, mas nos proximos dias entrarao varios textos ainda.
Se eu lembrasse desse texto, teria feito um esforço pra ver o filme. Cazzo!
ainda vai estrear no rio, rodrigão. se liga!