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Críticas

Cineplayers

Um belíssimo filme sobre a memória e o afeto.

8,0

Assayas vinha de uma série de filmes essencialmente cinematográficos nesta década. De Demonlover a Traição em Hong Kong, passando inclusive pelo dramático Clean, os filmes do francês trabalhavam instintivamente na construção e desconstrução de signos e elementos de gênero, tendo o cuidado e a investigação da imagem como elemento destaque – um resquício do que já começava a fazer na década de 1990, com filmes como Irma Vep. É uma surpresa, portanto, que este Horas de Verão, o mais recente filme do diretor, seja exatamente o mais anti-assayasiano de seus trabalhos e, ao mesmo tempo, uma evolução desta sua linguagem cinematográfica bastante particular.

Em Horas de Verão, Assayas parte para um capítulo consequente de seu estudo sobre a imagem, deslocando o foco para o que, afinal, resta dela: a memória. Afetiva, histórica, cultural, que se manifesta não apenas através da mente e das lembranças que mantemos, mas em signos, objetos, pessoas e obras de arte, ao mesmo tempo em que avalia o próprio valor destes resquícios em relação ao que já foram e ao quanto podem ser úteis para as próximas gerações. É um filme de uma sofisticação e beleza raramente vistas, marcas de um diretor que carrega consigo uma consciência cinematográfica e uma visão de mundo maduras e extremamente sólidas.

O ponto de partida de Assayas é o reencontro de uma grande família, que como todas as outras é embalada pela difícil relação entre as partes. O motivo, porém, não é dos mais agradáveis: momentos após  a comemoração do aniversário de sua matriarca, os três irmãos, que raramente se encontram e não têm exatamente uma boa relação, precisam aceitar sua morte. Assayas mantém a velha senhora viva por cerca de quinze minutos, pouco antes de desfragmentá-la através de seus filhos, dos objetos que detinha, das obras de arte do marido que estavam sob sua responsabilidade e das lembranças que deixaria para aqueles com quem convivia.

A partir deste ponto, Horas de Verão se revela um filme de uma melancolia impressionante, velada, porém sempre eminente pela constante sensação de nostalgia impregnada em cada gesto ou olhar. Os três filhos da senhora disputam a partir de seus próprios interesses o que restou de concreto nesta memória familiar, mas Assayas parece o tempo todo evidenciar que seu foco é precisamente o oposto do que está sendo mostrado fisicamente por imagens. A verdadeira memória, aquela que realmente lhe interessa, jamais diz respeito à representatividade e relevância física destes objetos, e sim à sentimental e afetual.

A câmera de Assayas jamais esteve em tão perfeito equilíbrio, captando uma naturalidade impressionante deste grande grupo de atores. Horas de Verão é praticamente anti-encenado e, ao contrário da precisão de movimentos e colagem de signos ficcionais de seus filmes anteriores, o que realmente se destaca é o olhar atento e delicado de Assayas para fazer de cada pequeno gesto uma grande demonstração de carinho. O diretor passeia entre os atores com seus sutis e habituais travellings e alguns planos-seqüências que fazem não do corpo, mas da alma de seus atores, a verdadeira chave da mise-en-scéne.

O calor humano de Horas de Verão é arrepiante, fazendo o filme transbordar uma intensa carga emocional que consegue por muitas vezes ultrapassar os limites da tela e atingir direto o coração, sem que, pra isso, precise apelar para qualquer tipo de falácia cinematográfica: é um filme puro, que opta por deixar de lado o sentimentalismo e aposta exclusivamente na potencialidade daquilo que é sentido através da natural força das imagens ou do que está subentendido nelas.

Mas o mais importante de Horas de Verão, a despeito de toda esta precisão e beleza, é o respeito do diretor com a tenuidade e a importância desta linha do tempo e de sua continuidade. Assayas conclui seu filme mostrando uma festa na casa que abrigava aquela família. Jovens andando de skate, dança, música eletrônica, homens, mulheres e a libido comendo solta. Um olhar mais insensível e este seria o palco perfeito para um discurso sobre a falta de respeito com a memória, sobre o desatino dos jovens para com as heranças familiares etc. Para Assayas, não. O momento, agora, é da nova geração, que substitui a anterior, mas não enterra suas memórias. O local continua lá, e para quem viveu nele antigamente, as memórias permanecerão intectas, independente do que será feito nele ou com ele no futuro. Já a juventude trata, apenas, de construir novas memórias, seja na vida, seja na arte. Uma renovação que ainda deverá acontecer por muitas gerações.

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