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Críticas

Cineplayers

Premiado drama francês é dos principais lançamentos do ano.

8,0

O francês Xavier Beavouis se confirmou ao longo do tempo como diretor de poucos filmes e presença quase restrita aos festivais. Seria injusto reduzi-lo a cineasta de filmes rodados para angariar prêmios, mas são estes que acabam dando uma maior repercussão para sua obra, e garantindo a visibilidade do seu novo Homens e Deuses (Des Hommes Et de Dieux, 2010). Em algum momento dos anos 90, Beavouis despontara como uma revelação ao vencer o Prêmio do Júri em Cannes com um dos seus primeiros filmes, a pequena obra-prima Não Se Esqueça Que Você Vai Morrer (N’Oublie pás que Tu Vas Mourir, 1995) ─ título cujo sentido também paira como uma ameaça real sobre a cabeça de todos os personagens centrais de Homens e Deuses, os sete monges franceses (há um oitavo integrante do grupo, o médico local interpretado por Michael Lonsdale) plantados num mosteiro em meio às cordilheiras da África, em território argelino.

A primeira meia hora de Homens e Deuses faz pouco mais do que nos localizar no pequeno mundo em que os personagens permanecem isolados, em pacífica convivência com a comunidade muçulmana ao redor, cujos habitantes estão sujeitos aos favores dos missionários, que distribuem alimentos, vestimentas e remédios. As personalidades distintas de cada um dos monges ainda não são muito visíveis nesse começo em meio às experiências diárias com a população diminuta do lugar ou dentro do templo, na liturgia católica ou em trabalhos agrícolas, no entanto, a descrição poderia sugerir um pequeno filme de comunidade nos moldes de John Ford (vale dizer que o filme, em alguns aspectos, não está muito distante de um Sete Mulheres [7 Women, 1966], por exemplo), ou ainda O Testamento de Deus ([Stars in my Crown, 1950], de Tourneur), num outro contexto e período histórico (mais contemporâneo ao nosso, no caso do filme de Beavouis, e ao mesmo tempo próximo e distante do olhar ocidental).

Como nos dois títulos clássicos acima mencionados, em Homens e Deuses também vemos irromper em meio à paz e à religião de uma pequena localidade uma ameaça externa com a invasão da violência e o terror impostos pelos fundamentalistas islâmicos, que se insurgem assassinando operários estrangeiros e intimidando a população a poucos quilômetros dali. Como em Tourneur ou Ford, o diretor francês também se concentra mais no elemento humano do que na violência, que é bem contida no filme, ainda que vez ou outra ela se manifeste com grande força (como na sanguinolência da primeira investida dos radicais que atacam cortando a garganta de suas vítimas). O que assombra mesmo é a ameaça dessa violência.

É quando as particularidades de cada um dos monges (todos entre a morte e a salvação) vão tomando forma e despontam em Homens e Deuses. O filme de Xavier Beauvoir é uma história de queda (como enunciado num trecho da epígrafe bíblica antes dos créditos iniciais). Não há clichês melodramáticos que poderia se esperar do argumento, e sim uma grande justeza com que o seu material é trabalhado. O filme não julga nem demoniza, ou sequer apresenta como vilões os responsáveis pela quebra da ordem e da tranqüilidade, e tampouco verbaliza certas questões em discursos ou explicações. Todo ele é sobre como os sete monges tiberianos comandados pelo relutante Christian (Lambert Wilson) lidam com a situação e se dividem entre quais as decisões mais corretas a serem tomadas. Ficar ou sair do mosteiro? Concordar ou não com as concessões impostas pelas autoridades locais do governo corrupto de permitirem a entrada de armas no templo para os protegerem?

É um estado de mundo dividido entre a crença espiritual de um lado e, do outro, as motivações políticas e arbitrárias de parte a parte. Homens e Deuses por vezes causa um curto-circuito na imagem, na maneira (tanto na paz quanto na beligerância) como cristãos e muçulmanos dividem o mesmo plano, ou as tensões e selvageria invadindo um espaço sagrado. Não Esqueça que Você Vai Morrer (que chegou a ser lançado em vídeo no Brasil) já era uma descida ao inferno atroz e pessimista de seu personagem central, agora o mais recente trabalho de Beavouis é sobre a perspectiva de se encontrar este inferno e em como chegar a um consenso em torno de uma escolha e alcançar a certeza da decisão justa. Em determinado momento, enquanto votam se devem permanecer ou não no mosteiro, uns não sabem o que responder, outros declaram que é cedo para decidirem. Um admite não ter para onde ir (o que deve ser o caso da maioria do grupo), um outro sentencia que partir é como morrer. O filme inteiro trata de demonstrar como as convicções se fortalecem passo a passo acima de todas as dúvidas e temores até o final. Ganhador de mais um prêmio em Cannes para o seu cineasta, e vencedor do último César (o Oscar francês), Homens e Deuses não é sobre martírio ou sacrifício, mas simplesmente sobre aqueles homens que (novamente fazendo menção a epígrafe dos créditos) vivem como deuses, mas caem como príncipes. Ir já não os leva a nenhum lugar.

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