Mais do que um empolgante faroeste, uma obra questionadora e de importante significado histórico.
Mesmo tendo realizado grandes filmes em outros gêneros, John Ford é, até hoje, o diretor mais associado ao faroeste em todo o cinema. Suas obras não apenas ajudaram a moldar as regras e conceitos do gênero como também influenciaram todos os outros cineastas que versaram sobre o Velho Oeste, como Sergio Leone e Clint Eastwood. Em 1962, já um diretor consagrado, Ford realizou aquele que talvez seja o seu faroeste mais importante, O Homem que Matou o Facínora, uma obra seminal e sua melancólica visão sobre o final de uma época que marcou a história norte-americana e um gênero que definiu o cinema.
Escrito por James Warner Bella e Willis Goldbeck a partir de uma história de Dorothy M. Johnson, O Homem que Matou o Facínora começa com a chegada do senador Ransom Stoddard e sua esposa Hallie na estação de trem de Shinbone. A razão da ilustre presença do político na pequena cidade é o funeral de Tom Doniphon, um homem sobre o qual as gerações mais jovens do local nunca ouviram falar. A pedido do jornal da região, Stoddard conta como a sua história cruzou com a de Doniphon dezenas de anos atrás, quando o senador, recém-saído da faculdade de Direito, e Tom, quase o xerife da região, decidiram enfrentar Liberty Valance, o bandido que constantemente ameaçava o local.
O Homem que Matou o Facínora é considerado, hoje, um dos maiores clássicos não somente do faroeste, mas de todo o cinema. E com justiça. É um filme capaz de ser apreciado em diversos níveis, tanto apenas pela força da história e dos personagens quanto por todo o significado que possui e questões que ousa levantar. O que se vê na superfície é apenas uma parte. Como é comum nos filmes de Ford, O Homem que Matou o Facínora não está limitado apenas ao conflito entre os bandidos e os mocinhos, utilizando este enredo para trazer à tona discussões sobre conceitos como a passagem do tempo, o papel da imprensa, o valor do ser humano e a necessidade da existência dos mitos.
“Esse lugar mudou”, diz Hallie (Miles), logo nas primeiras cenas de O Homem que Matou o Facínora. Desde o princípio, Ford planta os alicerces para a principal mensagem que vai transmitir durante as pouco mais de duas horas de filme: a do final de uma era. A chegada do idealista e literato Ransom Stoddard (Stewart) à cidade é a representação do conflito entre os valores do Velho Oeste e a chegada do progresso. Stoddard prefere livros às armas. É a civilidade buscando espaço neste local e nesta época bárbara. A modernidade e a decência tentando se inserir em um lugar onde elas praticamente não existiam. O antagonismo entre Tom Doniphon e Liberty Valance é o símbolo de uma época em seus estertores, cujo golpe de misericórdia será dado pela educação e progresso representados por Stoddard.
Quando começa a dar aulas para o povo da cidade, Stoddard assume como lema: “A educação é a base para a lei e a ordem”. Doniphon, o típico personagem de John Wayne, o cowboy durão com uma pistola na cintura, acredita que o aprendizado é perda de tempo, pois ali isso não terá importância alguma. É a lei da bala contra a lei dos livros. O passado contra o futuro. O mesmo vale para as eleições propostas por Stoddard. Ao sugerir que as pessoas ajudem na formação de um Estado para lutar por seus direitos, o personagem faz com que a cidade dê mais um passo na direção da evolução e do progresso, deixando para trás o tempo onde a desordem imperava – nesse sentido, é simbólica a inserção da cena das eleições logo após a morte do bandido, como se aquele assassinato sepultasse o passado e abrisse as portas para o futuro.
O roteiro é perfeito na forma com a qual equilibra estas reflexões com o desenvolvimento do próprio enredo. Ford constrói a sua narrativa de forma precisa, com cada cena auxiliando no desenvolvimento dos personagens e, tão importante quanto, levando a trama adiante para o inevitável confronto com Valance. O título do filme, aliás, ajuda na construção dessa tensão: até o momento do duelo, o espectador não sabe quem é realmente o homem que vai matar o facínora. A dúvida permeia o desenrolar da trama: irá Ransom Stoddard renegar todos os seus valores de decência e tirar a vida de um homem ou a tarefa ficará a cargo de Tom Doniphon, o único capaz de realmente enfrentar Liberty Valance?
A formação da personalidade de Stoddard também é um dos grandes méritos de O Homem que Matou o Facínora. Além de possuir toda a já comentada significação, o personagem possui um arco interessantíssimo, que o coloca diante de profundos dilemas. Criado sob os preceitos da lei e doutrinado com todos os valores da civilização, Stoddard subitamente se vê em um local onde todas as suas crenças não possuem mais utilidade. Ele precisa mudar e, de certa forma, involuir para sobreviver. Ao mesmo tempo, também é o agente da mudança naquela sociedade, a ponte que liga a terra sem lei à sociedade organizada do amanhã. Este conflito interno do personagem, personificado brilhantemente através da vulnerabilidade de James Stewart, é um dos maiores pilares do filme.
Da mesma maneira, o dilema de Stoddard é uma das possíveis razões pelas quais O Homem que Matou o Facínora se tornou uma obra atemporal. O personagem se questiona sobre como enfrentar Liberty Valance: será possível fazê-lo apenas através das leis ou será necessário empunhar uma arma para lutar de igual para igual? De certa forma, é uma questão que permanece viva até hoje, um tema cada vez mais atual, principalmente em nossa sociedade. Como resolver o problema da violência? Apenas a decência e a educação são capazes de enfrentar a bala? Ou é indispensável declarar guerra, talvez a única “lei” capaz de obter algum resultado contra aqueles que desprezam a ordem e o bom senso?
E as interessantes questões levantadas por O Homem que Matou o Facínora não param por aí. Outro ponto central da narrativa é o papel desempenhado pela imprensa. As primeiras cenas do filme já deixam claro esse aspecto, quando os jornalistas exigem uma declaração de Stoddard, como se fosse direito do público saber o motivo pelo qual ele retornou à cidade. Ao longo do filme, os questionamentos sobre o assunto tornam-se mais freqüentes, chegando à discussão sobre o papel da mídia na formação de nossos heróis e de nossa história. O quanto daquilo que tomamos como fato realmente é verdade? A imprensa possui o direito de construir os modelos e referências de uma sociedade? “Quando a lenda se torna fato, publique a lenda”, diz um dos jornalistas, na frase mais famosa do filme.
Engana-se, porém, quem pensa que O Homem que Matou o Facínora é uma produção reflexiva e entediante, com o único objetivo de fazer o espectador pensar. Muito pelo contrário: trata-se de um filme envolvente, cuja história funciona em diversas camadas. Aqueles que buscam apenas assistir um faroeste empolgante, com belíssima narrativa, mocinhos e vilões, também não irão se decepcionar. John Ford é hábil ao não perder a mão da trama, construindo impecavelmente as relações entre os protagonistas de maneira que, no momento do clímax, é praticamente impossível desviar os olhos. O cineasta não deixa de lado nem mesmo o bom humor, tarefa realizada com perfeição pelos divertidos Edmond O’Brien, no papel do Sr. Peabody, e Andy Devine, como o xerife.
Complexo na construção dos personagens e profundo em significados, O Homem que Matou o Facínora é um grande filme e, acima de tudo, uma realização extremamente importante para o próprio cinema. Uma obra melancólica, que dá adeus a uma era enquanto abraça outra, realizada pelo cineasta que foi principal baluarte deste tempo que se ia. Divertido e empolgante, mas, acima de tudo, relevante e histórico.
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