Chamariam de maturidade cênica de um cineasta um controle absoluto da sua visão sobre a obra, contando a história de maneira direta e limpa, sem rodeios ou apelação para artifícios (artificialismos?) externos, como alteração do tempo corrente em cena, ou recursos reiterativos que diminuem a capacidade intelectual do espectador, como flashback, narração em off ou linha temporal quebrada ou descontinuada, para reforçar detalhes ou elementos que precisariam ser mostrados. A reunião de alguns desses elementos seriam um salvo conduto para atestar um avanço linguístico em uma obra mediante filmografia anterior do autor. A maneira mais objetiva de narrar uma história, no entanto, não é a única maneira acertada de se conseguir os resultados pretendidos. Não é uma regra.
História de um Casamento (Marriage Story, 2019) parte dessa economia de recursos para atestar um avanço de Noah Baumbach em uma proposta iniciada em A Lula e a Baleia (The Squid and the Whale, 2005) para filmar relações contemporâneas entre pais, filhos, casais, em momento de transição, conflitos em vias de acontecer, apenas à espera do momento de eclosão. Aqui, de maneira nada didática e com certa moderação no uso de elipses — apenas o necessário para compreender o avanço da narrativa — acompanhamos a relação de Charlie e Nicole, marido e mulher, diretor e atriz, pais de Henry, em busca de respostas que o tempo não trouxe. Em busca da individualidade que o matrimônio deixou de lado. Em busca de entender o outro, que nunca teve a oportunidade de expor sua verdade.
Se a princípio o texto do próprio Baumbach parece conceder espaço questionador apenas para um dos personagens, o desenrolar do filme vai rebatendo as angústias de um e de outro, até que todas as dúvidas sejam sanadas entre eles... Ou a maior parte delas. O brilhantismo do roteiro está em não concentrar suas jogadas como em uma partida de tênis; o rebote ao saque de um ou de outro virá cenas e cenas depois, quando for o momento certo. Os conflitos não se encerram em seus atos, mas quando tiverem de ser resolvidos. Mas serão. O filme parte do princípio básico da ação e reação, mas ela não surtirá efeito imediato; como na vida, nada acontece quando queremos, mas quando for a hora. Ela chegará.
A trilha facilmente reconhecível de Randy Newman é o único aspecto interno a invadir a barroca realização, trazendo uma leveza ligeiramente insidiosa aos espinhos que a encenação setentista propõe. Com inspiração na Nova Hollywood — mais especificamente no cinema que John Cassavetes inaugurou, e Woody Allen adoçou —, a montagem seca de Jennifer Lame e a fotografia lavada de Robbie Ryan compõem um mosaico cinematográfico de influências cartesianas que faz parte da escola que Baumbach sempre bebeu e aqui encontra um ponto de climax. Contribuem obviamente para isso a atuação uniforme de um elenco espetacular, encabeçados por magistrais momentos de Adam Driver e Scarlett Johansson, seguidos de perto por Laura Dern, Ray Liotta, Alan Alda, Julie Hagerty, Merritt Wever, Wallace Shaw e o pequeno Azhy Robertson.
Constituem a força do longa as inúmeras cenas onde essas pessoas citadas acima demonstram sua entrega empática àquela história. A longa cena do esperado acerto de contas, o inacreditável momento em que Charlie chega a casa da mãe de Nicole e todos os elementos parecem dar errado, a canção de Charlie, o desabafo de Nicole com a advogada, o embate entre os advogados, a leitura final, não apenas todos esses momentos foram escritos com precisão, como dirigidos com intensidade por uma câmera que capta o ângulo certo no momento certo. É um trabalho meticuloso e quase invisível; ledo engano, vide a cena em que Charlie recebe um telefonema e precisa ir à rua, onde o caos lhe aguarda.
Sapatos amarrados, beijos furtivos, lágrimas compartilhadas... Momentos que constituem continuidade, compreensão do outro, afeição genuína, amor perene, tudo isso, nada disso. Talvez só o tempo traga as respostas que cada um gostaria de ter. Mas não o tempo do cinema, aquele que a edição acelera e amaina à necessidade do projeto, não o tempo em que a luz correta precisa atravessar por aquela janela, não o tempo do roteiro que determina quando é a próxima deixa de fala sutil e necessária, mas o tempo da vida.
Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo
Que Critica maravilhosa
Eu estou na mesma do Carlos. Não curtia os textos do Carbone, mas esse eu adorei! Ficou muito bom!
Que filme meus caros... Que filme!