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Críticas

Cineplayers

O que tem de humano no Cinema.

10,0

A antítese. Não há um elemento tão característico no cinema de Michael Mann quanto o trabalho de por em jogo elementos opostos para, daí, criar um notável contraste e certo efeito de sentido. O homem tem consigo uma curiosa estética de diálogo entre os personagens e o espaço em que estão inseridos; no caso do elemento mais recorrente, o contraste entre a escuridão e a luz, fica notável seu compromisso em tratar certos conflitos sentimentais, tal como a solidão (a noite – seja ela da forma como se manifesta - e o que pode haver de artificial nela, e a fascinação de observar o ser humano desnorteado nesse meio), e qualquer elemento central da narrativa termina por se tornar uma consequência da experiência que seus personagens têm dela. Enfim, o excesso. Hacker (Blackhat, 2015) tem tudo isso, e mais um pouco: estamos diante de uma obra conceitual em vários aspectos – trata-se, basicamente, de Michael Mann filmando algo que diz respeito à era cibernética; o difícil seria imaginar outra pessoa fazendo isso sem cair no lugar-comum (dito isso: poucos usam o formato digital com tanta propriedade; esse artifício, somado a esse ponto temático, naturalmente que daria poucas chances para que algo de errado pudesse ter acontecido).

Assim que Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth) aparece, nota-se uma postura fria facilmente associada a uma pessoa perigosa e de poucos amigos: é tratado como um animal imundo na prisão, de evidente arrogância e com uma capacidade incrível de calcular suas ações de modo a, apesar de sua situação de prisioneiro, nunca perder o tratamento de superioridade para com seus carrascos. A exploração da intimidade de seus personagens, tão comum ao cinema de Mann, no entanto, não tarda a demonstrar fortes sinais: Hemsworth fitando o céu após ter sua liberdade (o desnorteamento), é praticamente o principal ponto de partida para a nossa compreensão de toda a evolução do personagem e sua ligação com os demais. A solidão a qual me referi há pouco é um ponto direto no relacionamento interracial existente no filme (lembranças a Colin Farrell e Li Gong em Miami Vice [idem, 2006]); não é criada uma base na paixonite: é apenas a câmera que capta olhares maliciosos (pernas, nuca, o constrangimento denunciado pelo desvio do olhar etc) para demonstrar o puro desejo sendo em seguida traduzido pela ação sexual, e o amor como uma consequência final disso – ou seja, o oposto: a paixão que nasce a partir do desejo carnal.

Uma linha entre o uso berrante de cores e o desenvolvimento do suspense cibernético perdura na trama; o processo é coordenado: são investigações e ameaças ocorridas no meio digital que sempre terminam em suor e sangue – a influência de um meio sobre o outro. Não é tão espantoso de ver Chris Hemsworth incorporando seu personagem, a princípio visto “apenas” como um gênio da informática, segurando uma arma e matando com a mesma perícia de seus inimigos – que, por mais que não tenhamos conhecimento sobre suas origens, aqui ocorre uma quebra do imaginário popular acerca de uma pessoa apresentada à forma inicial. Os personagens não apresentam qualquer informação relevante de origem (e mesmo quando algum resquício dela surge, é para dar certo suporte para o estado presente deles – a policial, de forma seca e dolorosa, respondendo ao seu colega quando lhe pergunta quem ela perdeu no ataque ao World Trade Center, no 11 de Setembro de 2001: “Meu marido.”), mas nos identificamos porque os reconhecemos como iguais (o fator humano que ali é contido).

A violência atinge em cheio o carnal e seu efeito destrutivo vem para confirmar sua humanidade; no filme, o universo digital é apenas uma extensão do humano - a já citada relação entre os personagens, as questões diplomáticas levantadas na narrativa, a economia que move o mundo etc. As sequências de tiro, por exemplo, não nos deixam dúvidas quanto às intenções comuns ao cinema de Michael Mann: sem aquela montagem picotada; tudo filmado com a maior calma do mundo e com a prevalência da câmera na mão – é importante essa impressão passada, de uma pessoa manejando o instrumento que nos fará testemunhar a ação. E para testar a força desse efeito de proximidade entre o espectador e a narrativa, fica óbvio que faz parte do pacote de ideias retirar certas peças do tabuleiro, o que desperta pelo menos dois aspectos: 1) a ousadia para brincar com a narrativa justamente para fortalecê-la e 2) a confiança no próprio tato para domar a tal ousadia – estamos falando em alguém experiente, e isso não é surpresa. Não é a toa que o filme não poupa de momentos de orgasmo para o espectador: atmosfera, impregnada em tudo (a situação mais bela do filme certamente consiste em um simples contraplongé em um prédio iluminado, simulando o olhar de alguém à beira da morte).

É um trabalho de fácil identificação, sua assinatura é mais que explícita. Existe uma cena em que Chris Hemsworth reflete sobre as pistas de sua caça e começa a pensar em voz alta, procurando adivinhar o que se passa naquela mente, a união da caça ao caçador (“É nisso que você está pensando, não é?”): quase uma releitura de William Petersen obcecado por adentrar no psicológico de um assassino em série em Caçador de Assassinos (Manhunter, 1986), estabelecendo uma relação de voyeurismo, praticamente de cumplicidade. Aliás, melhor dizendo, a semelhança grita entre os dois: pessoas importantes e problemáticas que se veem obrigadas a abandonar a zona de conforto, voltando à ativa não apenas com o objetivo de atender a necessidades externas, mas sobretudo para exorcizar seus demônios. Hacker é Michael Mann puro; em sua filmografia, é um olhar para o passado, porém com os pés fixos no presente, algo que já foi feito antes, mas que passa por um processo de ressignificação aqui – prova de que a forma como se filma tem mais relevância qualitativa que o objeto a ser filmado (toda leitura de determinado item é uma questão de perspectiva – aí reside sua substância).

Michael Mann é o cara. Acho que isso muita gente já sabe. Ou precisa saber.

Comentários (34)

Victor Henrique Schmidt Timm | segunda-feira, 20 de Julho de 2015 - 16:37

Cara, ia fazer um baita texto, como toda minha indignação, mas melhor não. Só vou dizer que vi esse filme apenas porquê vi essa nota 10, e pela sinopse tinha potencial, então realmente poderia ser um bom filme. Mas achei muito fraco. Não gostei das atuações, e o final? Bah, muito fraco.

Felipe Ishac | quarta-feira, 22 de Julho de 2015 - 06:20

Excelente texto Victor, foram poucos que conseguiram entender as nuances e os maneirismos que Mann quis passar nesse filme. O pessoal tem que começar a entender que a nota não se passa de algo simbólico, e que o importante para a compreensão dessa simbologia são os argumentos e ideias passadas no texto.

Lucas de Melo Silva | segunda-feira, 24 de Agosto de 2015 - 18:20

Esse filme é realmente uma bosta! (Voltando aqui porque acabei de re-ver pra ver se subia no meu conceito, mas pqp)

Marcelo Queiroz | sábado, 02 de Janeiro de 2016 - 22:51

Frequento o Cineplayers há um ano. Esse, certamente, é o melhor texto que já li por aqui. Quanto ao filme, vi hoje, é lindo e ótimo, Mann tá de parabéns!

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