Cláudio Marques e Marília Hughes tem claro interesse pela incomunicabilidade. Tanto Depois da Chuva quanto A Cidade do Futuro sâo longas seus longas anteriores onde essa ideia já estava impregnada na narrativa, de uma maneira ou de outra. Enquanto no primeiro o protagonista era um adolescente de fato fechado em si, no segundo o "trisal" apresentado enfrentava aos poucos a intolerância de sua região, que não queria vê-los ou ouvi-los. Em tempos polarizados, é inteligente que eles permaneçam nessa temática e ampliem para um conflito geracional sem sentido, por se tratarem de duas personagens onde suas visões de sociedade convergem em muitos pontos, além da parentalidade.
Ainda assim, avó e neta não se enxergam no mesmo terreno durante boa parte da produção. As imagens as apartam em todos os sentidos, a aproximação é impedida desde pelo crédito inicial até ser desenhada através de portas, mesas, gritos, e enfim, mundos. Interiores até. Há um egoísmo em não tentar compreender uma a outra, uma falta de empatia inicial que só reforça diferenças quase inexistentes e empurra o entendimento para baixo do tapete. Ainda que julgando as atitudes de Dora, antes dos erros cometidos há a ausência do diálogo, a falta de compreensão de um outro indivíduo, o desprezo por alguém que simplesmente não é você, e isso é compartilhado por Maria, que fecha a porta para a neta.
Exatamente como na sociedade atual, Guerra de Algodão configura seus conflitos na escolha pelo individualismo herdado pelo norte-americano, que só olha para si. Essa é a raiz da polarização, um mundo que escolhe ignorar o outro é um mundo apto a permitir os horrores que os precederá. A relação entre Dora e o mundo a sua volta é de rejeição, e nisso o filme tem alguma comunicação com o recente Deslembro, mas enquanto o longa de Flávia Castro usava o passado não apenas para apontar o presente, como para solucioná-lo, o filme de Marília e Claudio é um bicho originário do egoísmo do hoje, que precisa ser compreendido de fora para dentro para gerar a autoanálise tão em falta atualmente. A neta demora a perceber o que o espectador absorve rápido: ela é descendente de Maria, está impresso em seu DNA.
Um aspecto que foi destaque nos longas anteriores e volta a impressionar aqui são a banda sonora e sua captura. Exatamente por saber dosar os contrastes de sua captação, equilibrando os silêncios e as explosões de áudio, elaborando uma moldura para sua trilha sonora (aqui muito suavizada) e utilizando os elementos de percussão para cenas capitais da narrativa — quando Dora parte da sua bolha para uma bolha quase estrangeira pra ela — e o filme expande em uma baianidade clássica porém necessária para a narrativa, inserindo a protagonista em um universo que ela demanda descobrir, e que será a chave de sua libertação pessoal, e talvez sua redenção.
Ainda que tantos temas façam jus à relevância do seu material e um belo simbolismo nasça de uma cena no teatro, as ruínas da arte dando ênfase à (re)construção do feminismo interno das duas personagens centrais, Guerra de Algodão sofre de alguma artificialidade, e que no filme anterior da dupla era o pulo do gato da produção. Como aqui temos um viés menos arquetípico, uma proposta de naturalização ou de mergulho e na beleza da própria humanidade, certas cenas descem com alguma dificuldade, como as que lidam com o assédio no encontro jovem noturno. Ainda assim temos uma manutenção temática dentro de uma obra que expande seu universo de diálogo, e ressignifica o próprio tema caro à Cláudio e Marília, a necessidade de comunicação.
Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo
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