5,0
Os holofotes estão todos voltados à Netflix, mas até o momento os esforços da Amazon Studios na produção e principalmente distribuição de filmes têm sido bem mais assertivos - entre filmes recentes nos quais a principal rival da gigante do streaming se envolveu estão Z - A Cidade Perdida, Roda Gigante, Sem Fôlego, Manchester à Beira Mar e Paterson, respectivamente de James Gray, Woody Allen, Todd Haynes, Kenneth Lonergan e Jim Jarmusch, alguns dos mais interessantes filmes americanos a passarem pelo circuito exibidor brasileiro nos últimos 12 meses (ainda tem o plus de distribuirem conteúdos em salas comerciais, sem embates vaidosos e oportunistas contra elas). O que sustentou um mínimo interesse em ver Gringo - Vivo ou Morto, projeto dirigido por Nash Edgerton e estrelado por seu irmão, o ator Joel Edgerton. Não dá para acertar sempre, mas mesmo um filme absolutamente limitado como esse ainda é um entretenimento mais razoável que Já Não Me Sinto Mais em Casa Neste Mundo, Bright, The Cloverfield Paradox e outros lixos habituais da concorrente.
O trabalho de Nash Edgerton, cineasta já com alguns curtas e longas no currículo, mira o filão das comédias de crimes mal elaborados com doses de humor negro, popularizadas pelos Coen, Boyle, Ritchie e Tarantino nos anos 1990, e que até esses autores já praticamente desistiram de produzir - embora sigam influentes para novas gerações, por mais desgastadas e maltratadas que essas fórmulas estejam. O que se tornava evidente também no recente Três Anúncios Para um Crime, que compartilha a mesma predileção por costurar vários personagens moralmente duvidosos a subtramas que irão colidir em rompantes de violência, formando uma espécie de mosaico sobre a América - em diferentes proporções e pretensões, afinal, enquanto o filme de Martin McDonagh faz uso do cinismo e do sarcasmo para elaborar seu olhar crítico sobre a parcela dos Estados Unidos capaz de eleger um Donald Trump, neste a pretensão é apenas a construção de arquétipos para o humor ligeiro.
Mesmo assim estão lá, no cerne da produção, uma série de questões sociais frequentemente abordadas pelo cinema contemporâneo: o negro em condição inferior aos burocratas brancos e sofrendo consequências diversas dessa relação étnica e de classes; a imigração; a legalização da maconha nos EUA; a indústria farmacêutica; os problemas fronteiriços e o tráfico de drogas cruzando a linha divisória com o México - é claro que, na maior parte do tempo, a América Latina para os roteiristas hollywoodianos é tão somente um fornecedor de entorpecentes, armas e bundas. Boa parte da ação decorre em dois espaços contrastantes, a arquitetura limpa e cinzenta da multinacional e as ruelas áridas e de cores quentes da cidadezinha mexicana, mas as intenções de Edgerton sobre essa dualidade se limitam ao argumento e à instalação do cenário, no qual seu personagem principal, o clichezão do loser panaca que é traído por todos à sua volta, dará a volta por cima numa vingança pessoal contra aqueles que o fizeram sofrer.
A descrição indica uma curva ascendente, mas na verdade a estrutura da obra é mais semelhante à de um mosaico embaralhado. São quase duas horas de storytelling desenfreado, lotadas de subtramas e arcos dramáticos que nem sempre importam e um humor que em raros momentos consegue o efeito desejado - que fique registrado que eu adoro a Charlize Theron, mas sua personagem é inútil e essa persona da mulher no mundo dos negócios que usa o próprio sex appeal para escalada arrivista dificilmente vai continuar funcionando depois de Toni Erdmann. A impressão geral é que qualquer episódio secundário de Arrested Development já trouxe alguma solução melhor para todas as tentativas de humor com as diferenças culturais entre EUA e México, as imoralidades do crime e do poder, o mundo do business internacional, os personagens secundários bizarros que surgem de repente para provocar uma catarse cômica em cena, etc - entretanto, sensacional o irmão maníaco do burocrata que abandona o crime pra viver de serviço social no Haiti, ao lado do traficante fã de Beatles é de longe o melhor personagem e aquele com as cenas mais memoráveis.
Por outro lado, no atual contexto das produções para as salas multiplex (nas quais cada vez mais se instalam armadilhas em torno de conceitinhos que disfarçam as limitações de fabulação, encenação e construção dramática dos cineastas com poder em Hollywood, com cada sessão sendo condicionada a provocar algum tipo de epifania sensorial diferente), uma obra que se permite arriscar tanto no desenvolvimento de arquétipos humorísticos e reviravoltas rocambolescas, por puro e despretensioso exercício narrativo e sem deixar o ritmo cair, até deixa certo gostinho de satisfação - pelo menos uma sensação de que alguém verdadeiramente se esforçou para filmar e organizar tantas ideias distintas para cumprir as prerrogativas básicas da narrativa, sem apelar a nenhum fator externo para incitar no espectador uma falsa sensação de experiência singular, esse sim um dos piores entorpecentes transportados do México para os EUA até hoje (os filmes de Cuarón, Iñarritu e Del Toro que o digam).
A propósito, meu disco favorito dos Beatles é o Revolver. Provavelmente também levaria um tiro.
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