O primeiro grande filme de Kubrick, no qual já se pode perceber o embrião do que formaria a sua visão de cinema.
Sempre é interessante analisar os primeiros trabalhos de um artista que viria a se tornar referência em seu campo de atuação. Seja na música, na literatura, no cinema ou em qualquer outra forma de arte, é possível perceber nestes esforços iniciais uma visão diferenciada, um talento incipiente, ainda que a inexperiência impeça a construção de obras bem-acabadas. Os primeiros passos de Stanley Kubrick no mundo do cinema, como este O Grande Golpe, são um bom exemplo disso. Dentro de pouco tempo, o cineasta construiria algumas das obras mais relevantes da sétima arte e, ainda que O Grande Golpe não esteja no nível delas, é uma importante referência na afirmação de seu estilo.
Baseado em um livro de Lionel White, Kubrick escreveu (com o apoio de Jim Thompson, responsável pelos diálogos) este que se tornaria um dos primeiros e mais influentes dos chamados heist movies, ou, em uma tradução pouco inspirada, os filmes de roubo. A história é sobre um grupo que planeja um assalto no dia da corrida de cavalos mais importante do ano. Liderado pelo ex-presidiário Johnny Clay, o bando esquematiza tudo nos mínimos detalhes para o golpe que pode render a eles algo em torno de dois milhões de dólares. Mas, como sempre, nem tudo sai de acordo com o esperado.
O Grande Golpe é um dos primeiros trabalhos de Kubrick (em ordem cronológica, o segundo ainda disponível, uma vez que seus primeiros não foram distribuídos), seguindo o fraquíssimo A Morte Passou por Perto e antecedendo o excelente Glória Feita de Sangue. Claramente, o cineasta demonstra evolução em relação ao seu esforço anterior, que apresentava uma narrativa desleixada e uma história totalmente sem graça, com um ou outro momento interessante. Agora, trabalhando com um enredo baseado em um livro – fato que viria a se tornar típico em sua carreira –, Kubrick revela pela primeira vez o seu completo domínio na condução de uma trama interessante, em um filme coeso e tenso que, assim que captura a atenção da plateia, jamais a deixa escapar.
Em seus primeiros minutos, O Grande Golpe parece meio estranho ao espectador. A narração em off surge intrusiva e expositiva demais, apostando em uma formalidade que parece retirada diretamente de uma obra literária. Este recurso está presente ao longo de todo o filme e é inevitável apontar que se trata de algo desnecessário, que mais prejudica o filme do que auxilia em sua compreensão (segundo os relatos, Kubrick foi contra a narração, mas acabou cedendo às insistências do estúdio). Da mesma forma, Kubrick opta por iniciar o filme já em meio aos acontecimentos, sem apresentar os eventos ou os personagens. Como consequência, o espectador leva algum tempo para se situar dentro da trama e, principalmente, a se acostumar às opções feitas pelo cineasta.
A mais importante delas talvez seja a que diz respeito à estrutura não-linear. Em uma escolha ousada para um cineasta quase iniciante, Kubrick constrói o seu filme brincando com a cronologia, utilizando um artifício que influenciou diversos cineastas ao longo dos anos, como Quentin Tarantino e Guy Ritchie. O Grande Golpe não foi o primeiro filme a quebrar o tempo da narrativa (Cidadão Kane, apenas para citar um exemplo, já tinha feito isso), mas talvez tenha sido o pioneiro no formato de contar o mesmo acontecimento através de diversos pontos de vista: somente após as diversas linhas narrativas terem sido apresentadas é possível compreender o todo da história – diferente do que Kurosawa fez em Rashomon, por exemplo, uma vez que lá se tratavam de versões da história.
O melhor de tudo é que este recurso não surge como um mero exercício de estilo ou uma distração, mas realmente desempenha papel fundamental na construção da tensão do filme. Kubrick cria uma atmosfera angustiante, de que algo errado está sempre prestes a acontecer, combinando a inovadora estrutura narrativa com uma ótima trilha sonora e um trabalho de direção irrepreensível. O seu rigor estético preciso, a simetria na colocação dos elementos no plano e os elegantes movimentos de câmera, características que viriam a marcar o seu cinema, já podem ser percebidos em O Grande Golpe, como na cena na qual George conversa com Sherry e a câmera oscila de um lado para o outro, acompanhando os movimentos dele.
Outro conceito recorrente no cinema de Kubrick e presente aqui em forma embrionária é a sua visão nada colorida da humanidade. O cineasta sempre se interessou pelo lado negro do Homem, por seus impulsos e desejos obscuros, e O Grande Golpe versa sobre estes assuntos, mesmo que de forma superficial. Claramente, o desenvolvimento psicológico dos personagens não é a maior força do filme, mas, ainda assim, Kubrick encontra espaço para apresentar este lado vil do ser humano, seja na frieza da personagem de Sherry, capaz de deixar o seu marido por dinheiro, ou no próprio fato de o enredo versar sobre um grupo com moralidade duvidosa.
Assim, ainda que não consiga transpor para o celulóide toda sua visão, pela própria falta de experiência ou por não haver encontrado o seu estilo próprio, Stanley Kubrick já dá claros sinais do grande cineasta que viria a se tornar. Hoje, graças à diferenciada estrutura, ótimos diálogos e à direção habilidosa, O Grande Golpe segue como um filme acima da média e eficiente dentro de seu propósito, tornando-se referência. Porém, apesar das qualidades, a obra é lembrada até hoje principalmente por representar os primeiros passos de um gênio.
E Kubrick, mesmo engatinhando, é melhor do que a maioria já de pé.
Tudo depende de gosto mesmo... para mim o filme não seria o mesmo sem a narração em off... eu amei a narração!😁
Ótima crítica, concordo plenamente.