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Críticas

Cineplayers

Inocência e nostalgia.

7,5

Retrato particular de uma juventude marcada por dilemas, descobertas, conflitos familiares, período histórico efervescente e uma amizade conturbada, Ginger & Rosa (idem, 2012) é o típico filme que dispensa pesquisa para que se constate tratar-se de um drama autobiográfico. A cada take mais contemplativo, diálogo minucioso ou apresentação das idiossincrasias da jovem protagonista, o que se nota é um exercício de nostalgia por parte da cineasta inglesa Sally Potter, a relembrar com muito carinho de sua adolescência – e aí reside seu maior êxito, pois é de onde emanam a beleza e a humanidade presentes na adaptação de sua história pessoal, jamais enfadonha.

Após breves imagens de uma Inglaterra assolada pela II Guerra Mundial, somos posicionados na década de 60, período em que o país ainda lutava, econômica e moralmente, para se recuperar dos resquícios traumáticos do conflito armado. E no centro dessa história surge Ginger, uma típica adolescente que, necessitada de se descobrir e se afirmar (ao mesmo tempo, o que deflagra sua ingenuidade), tem em sua melhor amiga, a verdadeiramente rebelde Rosa (Alice Englert), o lastro de que precisa para experimentar os excessos e possibilidades de sua tenra idade.

E assim Potter põe-se a, meticulosa e sutilmente, situar o espectador em todo o contexto a que estavam expostas as personagens-título: historicamente, tanto pela exposição das preocupações de Ginger com a Guerra Fria e a Crise dos Mísseis em Cuba (o que também diz muito sobre a [justificável] paranoia do povo britânico naquele tempo), como por aspectos técnicos como figurino, trilha sonora, direção de arte, etc, tudo muito bem harmonizado; em termos espaciais, passeando com sua câmera de planos abertos a espaços fechados, todos certamente familiares, captando instalações decadentes eficazes em ilustrar a instabilidade política e econômica da Inglaterra (vide o refúgio de Ginger, frente ao esqueleto de uma usina nuclear), país afundado em fotografia escura e em seu clima frio e nebuloso; e pessoalmente na vida de sua protagonista, principal força motriz da cinebiografia.

Isso porque, ao contrário do que induz o título, esse não é um filme sobre a amizade, mas a história da vida de Ginger. Isso fica muito bem definido ainda no primeiro ato: se o histórico familiar de Rosa é apresentado a conta gotas, a família da ruivinha é muito bem definida: Natalie (Christina Hendricks) é uma mulher de meia idade em crise, que abriu mão de sua vida profissional e artística como pintora por seu marido, Roland (Alessandro Nivola), um professor ateu libertário, ex-militante e apaixonado por música. Tais características tornam conflituosa a relação com a mãe instável e submissa e harmoniosa com o pai afável e revolucionário, com quem vai morar, e essa decisão é crucial nos rumos de Ginger e, ainda mais importante, no molde da personalidade da própria Sally Potter.

Como reflexo da idade, da liberdade concedida por Roland e da companhia de Rosa, Ginger se inicia no consumo de álcool e tabaco, tem seus primeiros envolvimentos amorosos, mas o sorriso inocente de sua intérprete, Elle Fanning (muito boa atuação da atriz, muito bem escalada), nunca sai de sua expressão. Sua entrada na militância contra o "holocausto nuclear" jamais surtirá qualquer efeito. Breve citação ao existencialismo de Simone de Beauvoir sai como descontraído lapso intelectualoide. E Sally Potter se diverte! Os impulsos e experiências estabanadas daquela menina ingênua são o molde da personalidade atual da cineasta. Em inconsciente resposta ao comportamento passivo da mãe, Potter virou defensora do feminismo – tanto presente em seu filme mais famoso, Orlando – A Mulher Imortal (Orlando, 1992), como nos atos impensados de Ginger –, aspecto comum ao posicionamento da escritora e filósofa francesa. Do contato com o pai, sugou além do espírito contestador a paixão pela música, tendo se tornado dançarina, coreógrafa de sucesso e responsável pelo som de alguns de seus filmes. E se nenhuma dessas realizações se concretizam durante a projeção, é porque esta se dedica apenas ao período de transformação da menina (Ginger) para a mulher (Potter) – o que justifica o fato da coadjuvante Rosa ser personagem-título, dado o protagonismo que a jovem exerce nessa fase da vida de sua amiga.

Então, quando Ginger enfim aceita que sua utópica preocupação com o iminente fim do mundo na verdade consiste no medo de seu mundo particular estar prestes a ruir, Saly Potter confere tons de singela poesia ao ato final de sua homenagem para si mesma. E não é de surpreender que, na última cena, em resposta a um pedido de perdão de Rosa, Ginger se ponha a escrever utilizando um pequeno caderno, uma vez que a obra pareça toda derivada de deleitosa e nostálgica revisita às páginas de um diário.

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