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Críticas

Cineplayers

A crônica de Nagisa Oshima é um grito de inspiração para que a jovem geração japonesa supere seu passado.

9,0

Nenhuma época do último século respira mais docudrama do que o período compreendido entre 1965 e 1975. O que mais me interessa descobrir, a respeito disso, é o porquê. Nos Estados Unidos, essa resposta é relativamente fácil de encontrar, se considerarmos a guerra do Vietnã e os demais acontecimentos revolucionários dos anos 1960, que são preenchidos com uma certa mitologia americana. Mas essa mesma tendência também é reconhecida no cinema inglês, japonês e brasileiro, pelo menos. Por enquanto, cheguei a considerar as ideias de que as lentes documentais inspiram mais realidade, mas também estimulam uma conexão mais intensa com espectador. Quem assiste pode, a partir de uma ótica do documentário, se inserir com mais facilidade no mundo que o filme tenta imprimir.

O Garoto Toshio (Shônen, 1969), de 1969, é uma obra cinematográfica cirurgicamente inserida em sua contemporaneidade. Não poderia ser de outra época, pelas escolhas formais e temáticas que produz. Com uma trama destacada de um jornal sensacionalista, Oshima Nagisa Oshima e Tsutomu Tamura esculpem a triste história de um garoto qualquer, e a derradeira história do Japão.

Esteticamente, é como se o filme laçasse, em diferentes níveis, as questões abordadas pelas duas mais bem sucedidas escolas do cinema japonês nos anos que o precederam: o drama intenso e amalgamo de Kurosawa, Mizoguchi, Ozu e etc, e as fantásticas histórias cheia de vida e crueza de Wakamatsu e Suzuki. A nova e a velha vague do Japão se entrelaçam no produto do jovem e dialético cineasta.

Acompanhamos a história de Toshio, sua madrasta, seu pai e seu irmão mais novo, enquanto cruzam o Japão aplicando golpes em motoristas. Ao filme, interessa algumas questões: primeiro, em como esses golpes se dão.

Normalmente, a madrasta de Toshio – grávida – forja um falso atropelamento e então o pai irrompe e exige dinheiro do motorista em troca de não envolver a polícia. Após uma dessas simulações, a mãe se machuca razoavelmente, e então Toshio é incumbido da função de forjar o atropelamento. Segundo, interessa saber que o pai de Toshio lutou na Segunda Guerra, e saiu de lá com sequelas (que aparentam ser mais manifestas em questões psicológicas do que físicas). Por último, é preciso observar que a disfuncional família de Toshio não parece ser particularmente pouco afetiva. Existe o cotidiano cigano, e as noções convencionais de tutela vão contra a ideia de usar o filho de 10 anos para pular na frente de automóveis, é verdade. Mas o filme fala de um Japão específico, e de uma classe específica de pessoas, dados que não justificam, mas esclarecem essa questão.

Notar que Toshio vive em um ambiente familiar de certa forma estável é ainda mais interessante para se ater na imagem que o garoto projeta no filme. Ele é uma figura apática, completamente triste, que fala como criança, mas não demonstra as emoções de uma. Ele se apega a situações, coisas, sentimentos aleatórios, num esforço de compensar a falta de apego que ele tem pelo que é seu cotidianamente. Por algum motivo, Oshima nos confronta com essa criança inerte e sombria, e apresenta muito pouco, nesse sentido, para clarear esses contornos.

A trágica história de três meses na vida de Toshio é o primeiro nível de observação no filme de Oshima. É uma história de tristeza, na qual o melodrama é usurpado em busca de uma relação emocional mais potente do que aquela causada pelos artifícios do autor. Ao menos era nisso que Ozu acreditava. Parece ser o que Oshima acredita também. E em minha própria relação com o cinema, me vejo muito mais afetado por esse tipo de filme, que opera nos silêncios e que a força motriz é gerada através das coisas que são enigmáticas, inconstantes, não elucidadas. Apenas o olhar atento à escuridão é capaz de imaginar manchas e contornos que se relacionam tão irrevogavelmente com sua própria realidade ao ponto de transformar o espetáculo semi pseudojornalístico em uma história de profunda tristeza enquanto Toshio sorri diante do irmão, e continua contando fábulas do espaço sideral.

Mas existe o outro nível de história, em que Toshio e seus familiares são apenas bonecos no banraku de Oshima, que narra a constituição de um novo Japão, desenfreadamente moderno, desenfreadamente inumano.

É nítido como as lentes de Oshima captam a todo momento o incômodo pulsante do novo Japão, onde a guerra e a implacável modernização subvertem os valores desse povo, apoderam-se de sua terra e seus ideais. Não é por acaso que O Garoto Toshio segue uma família de ciganos: a ideia é que toda uma geração de japoneses tornou-se realmente marginalizada, sendo obrigada a vagar por uma nação que já não a reconhece como sua.

Portanto, nesse segundo nível de leitura, interessa ao filme acompanhar a gênese de uma nova geração – aquela imediatamente posterior ao fim da segunda guerra, e refletir a respeito de como essa geração se coloca diante desse mundo irreconhecível aos olhos de seus antepassados. Toshio, a respeito disso, é uma figura delicada. Ao mesmo tempo em que é jovem, está intrinsecamente ligado ao passado, por conta do abuso paterno. Seu estoicismo é encarado aqui como um sintoma de uma grande doença de desapego. E o mote que o filme parece encarar, é a jornada pessoal de Toshio, que se confunde certamente com a jornada de toda uma geração, obrigada a encarar de frente com uma nova perspectiva os horrores do século da guerra, em se desapegar da memória e do ideal. Ao final do filme, o garoto constrói um disforme boneco de neve, adereçado com um relógio, símbolo do tempo que não se revoga, e uma bota, símbolo de morte, pecado, culpa. Toshio narra para o irmão mais novo uma de suas fábulas siderais, sobre heróis galácticos excluídos de sua nação para salvar outras humanidades. Ao terminar sua narrativa, ele se levanta e, graciosa ao mesmo tempo que violentamente, destrói o boneco por completo, e parece capaz, através desse choque, de se reconhecer, pela primeira vez, como realmente é.

Comentários (4)

Francisco Bandeira | terça-feira, 19 de Agosto de 2014 - 15:38

Excelente Guilherme, esse é um dos muitos filmes do Oshima que merecem mais divulgação aqui! Parabéns pelo belo texto.

Nilmar Souza | terça-feira, 19 de Agosto de 2014 - 15:47

Oshima sendo lembrado por aqui, legal. Belo texto, e o filme é demais.

Gian Couto | terça-feira, 19 de Agosto de 2014 - 20:32

Parece interessante. Já marquei aqui pra conferir qualquer dia desses.

Ravel Macedo | quarta-feira, 20 de Agosto de 2014 - 16:19

Bela lembrança, um dos grandes filme do Oshima.

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