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Críticas

Cineplayers

O ‘Garota Exemplar’ que não deu certo.

5,0
Há quem questione a ovação da personagem Amy Dunne, representada por uma agressiva e vibrante Rosamund Pike em Garota Exemplar (Gone Girl, 2014). A partir da loucura desvairada do livro de Gillian Flynn, chegou nas telas assumindo um posto representativo do sexo feminino que subvertia a infidelidade dos atos de abuso tipicamente masculinos, levando o nada vitimado personagem de Ben Affleck no filme de Fincher para um jogo de gato-e-rato onde, num objetivo final, era fazer o sexo oposto e “dominador” provar do seu próprio veneno. Amy Dunne, por fim, era uma catarse (e tem como esquecer da ensanguentada cena na cama?).

Visto a popularidade da obra de Fincher e a constância com que questões como os relacionamentos abusivos de homens para com mulheres tem se tornado um tema a ser debatido e analisado diariamente mundo afora, não fora surpresa quando A Garota no Trem (The Girl on the Train, 2016), baseado em livro de mesmo nome da romancista Paula Hawkins, embarcou carregando novamente todas estas mesmas questões sob uma roupagem de thriller psicológico, e considerando o sucesso da obra literária de Hawkins, as atenções sobre a adaptação comandada por Tate Taylor (do desprezível Histórias Cruzadas [The Help, 2011]) eram dadas como certas, novamente colocando em pauta a temática das relações abusivas. E dando a devida importância, tanto para o assunto quanto para a adaptação em si, A Garota no Trem se prova apenas como uma experiência de extrema fragilidade, cambaleante das próprias pernas e insuficiente enquanto estudo de um problema social. 

Na história dividida em três focos, conhecemos primeiramente Rachel (Emily Blunt, super competente), uma alcóolatra que enfrenta uma dolorosa fase de depressão após o divórcio com seu marido, Tom (Justin Theroux), que agora encontra-se numa relação com a mulher com quem traía Rachel. Viajando solitária em todas as manhãs nos trens de sua cidade para Londres, Rachel fantasia a vida de um casal que sempre observa pela janela do trem em suas viagens, até que um dia presencia uma cena inesperada e, pouco depois, descobre que a mulher está desaparecida, o que faz Rachel se envolver no mistério e buscar respostas para o desaparecimento da moça.

Apesar de não ter lido o livro, há quem diga que o ponto alto da escrita de Paula Hawkins é a divisão bem equilibrada em três ponto de vista na história, que vão costurando aos poucos a compreensão real dos fatos. A adaptação mantém essa estrutura, e quando não estamos do ponto de vista Rachel, conhecemos mais sobre Anna (Rebecca Ferguson), atual exposa do ex-marido de Rachel, e Megan (Haley Bennett), a vítima desaparecida e que supostamente mantinha um caso com o Dr. Kamal Abdic (Edgar Ramírez), seu psiquiatra com quem se abria sobre a influência e o controle exercidos pelo marido de Megan, Scott (Luke Evans). Deste miolo de relações é que A Garota no Trem visa extrair seu magnetismo enquanto thriller e seu poder discursivo enquanto uma análise social, mas falhando miseravelmente nos dois quesitos.

Pois se há um problema fatal em A Garota no Trem, este é a pouca eficácia de Taylor em suportar tantas linhas narrativas em um mesmo acontecimento, portanto, não se confunda se até determinado momento, você se sentir desorientado ou pouco compreender do que estiver acontecendo em A Garota no Trem, já que nem o roteiro da experiente Erin Cressida Wilson (do subestimado Homens, Mulheres e Filhos [Men, Women and Children, 2014], de Ivan Reitman) parece ter muita noção da história que está destrinchando. E neste caso, ajuda menos ainda a insistência do diretor em estilizar os vai-e-vens na história (são tantos flashbacks que a impaciência não demora a surgir), abusando de alguns recursos visuais (como a incômoda câmera extremamente próxima no rosto dos atores) que nada traduzem e pouco auxiliam na imersão do mistério, funcionando mais como distração.

E apesar de contar mal sua história (chega um momento em que ela, de fato, pouco importa), A Garota no Trem preserva alguma dignidade graças ao bom tratamento de suas personagens femininas, cada qual uma representação de um tipo de mulher que todos nós, tendo consciência ou não, devemos conhecer. Blunt, Bennett e Ferguson defendem seus papéis com garra, transformam suas personagens em figuras humanas, dependentes da autoridade masculina socialmente imposta e, no fundo, desesperadas em escapar dessa pressão cotidiana. Há quem possa confundir A Garota no Trem como uma obra que fragiliza em demasia suas mulheres, quando o objetivo é traçar um olhar solidário e isento de julgamentos sobre mulheres que se deixaram engolir pelos abusos da figura masculina, e nisto, o filme é muito mais orgânico em sua parte dramática do que no desenrolar do mistério inicial. O desaparecimento de alguns dos personagens homens lá pelas tantas não é desproposital e está de acordo com os objetivos da trama, mas são sumiços mal justificados e que, no fim das contas, acabam deixando um gosto de estranhamento.

Mas apesar de sua competência na dramaticidade da história, A Garota no Trem tenta ser um thriller narrativamente modernoso e intrincado, tão preocupado em surpreender com sua resolução, que não faz nada além de se auto-sabotar na maior parte do tempo, sendo pouco orgânico no trabalho com suas linhas temporais, demorando a engrenar e se firmando, parafraseando o que já li por aí, como o “Garota Exemplar que não deu certo”. Levando em consideração as semelhanças, não é uma afirmação exagerada.

Comentários (2)

Marcelo Queiroz | segunda-feira, 23 de Janeiro de 2017 - 17:42

Blunt é uma atriz de talento raro, pena que nesse filme seu dom tenha sido ofuscado pelo roteiro péssimo e direção genérica.

nelson rios dias | terça-feira, 24 de Janeiro de 2017 - 08:40

O filme foi tão confuso que até o critico transportou a história para Londres, rs

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