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Críticas

Cineplayers

Perdidos sob a luz neon.

8,0

É preciso muita boa vontade e disposição para embarcar e gostar do que Francis Ford Coppola oferece em O Fundo do Coração (One from the Heart, 1982). A ideia é mais extravagante do que funcional, o argumento mal se sustenta até o fim, os atores principais são fracos, a mise en scène é de gosto duvidoso e sobram gratuidades enquanto falta um roteiro. A história se complica se pensarmos que foi o trabalho posterior à obra-prima monstruosa Apocalypse Now (idem, 1979), um dos filmes mais importantes de todos os tempos. Entre Apocalypse Now e O Fundo do Coração existe um abismo, um momento limítrofe na carreira de um dos cineastas mais idolatrados e, paradoxalmente, mais mal compreendidos. Nesse abismo se afoga um gênio que ajudou a redefinir o cinema comercial americano e emerge um artista tresloucado e corajoso que ousou abrir mão do estofo proporcionado pelo nome que construiu até então para se aventurar em uma nova fase totalmente inconseqüente, certo de que já tinha cacife o suficiente para decidir o que filmar, quando filmar e como filmar.

Se para alguns O Fundo do Coração marcou o começo do declínio de Coppola, para outros o filme serve de porta de entrada para uma linha paralela seguida por ele, onde se encontram talvez não suas grandiosas obras-primas, mas talvez seus filmes de valor mais autoral e vulnerável. A expectativa em torno do filme era alta, o orçamento foi obsceno e a pretensão era digna de seus anos de glória, principalmente se levarmos em conta que tudo se passa em uma Las Vegas fake reconstruída em estúdio. O gênero é musical. O tema é casamento. A bela trilha sonora a cargo de Tom Waits consiste basicamente em uma sucessão de duetos que também fazem as vezes de narrador da história. Em resumo, um notável elefante branco.

Até hoje, agora com a distância histórica que somente o passar dos anos proporciona, não é possível identificar ao certo o que Coppola quis exatamente arriscando-se com um filme assim. Por um lado, enxergamos um artista desabrochando um lado seu que gostaria que fosse levado em consideração, enquanto abandona a vaidade pessoal e a ovação por obras passadas para dar a cara a tapa e revelar imperfeições, pontos vulneráveis, contrariando e questionando a opinião popular a seu respeito, como que incomodado pelo verniz de intocável que parecia bloquear qualquer nova possibilidade em sua carreira. Por outro lado, um artista experimental brincando com elementos primários do cinema, como o jogo de luzes, as estruturas cenográficas e as combinações mais extravagantes de sons, tramas e subtramas.

Sem medo de ser feliz, Coppola literalmente brinca na direção como uma criança manipula seus brinquedos de modo a formar uma história não necessariamente coesa e objetiva. E isso implica em exigir a já mencionada boa vontade por parte do espectador, que num primeiro momento talvez se choque com tamanha bagunça, principalmente vinda de um diretor outrora perfeccionista e habilidoso. Uma vez livre de qualquer preconceito e imerso na proposta de O Fundo do Coração, é possível reconhecer por trás de toda a luz neon, de toda a explosão policromática, um delicado tratado sobre o amor jovem, carregado de ímpeto, paixão, infantilidade e incertezas. A separação do casal, que vive pelo período de uma noite as mais diversas aventuras pela Las Vegas mais artificial do cinema lembra a ideia de filmes como O Atalante (L’Atalante, 1934) e Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952), que seguem esse trajeto duplo dos personagens, perdidos pelos reveses da vida, mas ainda unidos em coração e sem saber como achar uma solução para os problemas que surgem na rotina da vida a dois.

Dali em diante, Coppola pegaria gosto pelas premissas estranhas e se enveredaria cada vez mais por esse cinema avesso a tudo que ele foi no passado, em obras como O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983), Cotton Club (The Cotton Club, 1984), Peggy Sue, Seu Passado a Espera (Peggy Sue Got Married, 1986) e Tucker - Um Homem e Seu Sonho (Tucker: The Man and His Dream, 1988). Mesmo que a terceira parte de O Poderoso Chefão tenha parecido uma retomada ao velho estilo, ele logo se voltaria novamente aos trabalhos que lhe interessavam, independentes do pouco apelo popular, e os exemplos mais recentes são Tetro (idem, 2009) e Virgínia (Twixt, 2011).

Isso faz de O Fundo do Coração não uma exceção, mas o princípio de um processo de desconstrução de imagem que Coppola adotaria com afinco, e hoje ele prestigia um estranho misto de veneração pelo nome de peso que foi na década de 1970 com o apelo cult de sua fase impopular. Além disso, é um apaixonante musical à moda antiga, propositalmente artificial, colorido, raso e deslocado na linha do tempo, de valor, sobretudo, imagético. Sob sua luz de neon revelando um visual kitsch, há o suave caminhar de dois apaixonados perdidos nos literais bailes da vida, procurando um rumo. Pensando bem, talvez três apaixonados, já que invisível caminha ali no meio daqueles cenários coloridos um cineasta se desprendendo de tudo e de todos para encarar sozinho uma futura trajetória de incompreensão e peculiar beleza.

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