A relação entre indivíduo e meio ambiente foi, ao longo da história, se modificando. Muitos elementos de fauna e flora foram utilizados para sobrevivência e tantos outros serviram de inspiração para criar e se desafiar. A natureza teve e ainda detém poder destrutivo, como a força das ondas, do vento, de um terremoto... Mas também fornece cenários para o homo sapiens testar a si próprio, observando até onde pode ir com sua força e habilidade. É o foco de Free Solo evidenciar essa ideia. O grande personagem do documentário é Alex Honnold, cujas ações são captadas pela lente atenta tanto de Jimmy Chin quanto de Elizabeth Vasarhelyi.
Os dois cineastas se embrenham na tentativa de entender a vida que orbita a façanha daquele que escalara o grande paredão de 915 metros de altura. Falo de El Capitan, parede rochosa situada em Yosemite. Obstáculo que, desde o início, se mostra o grande fetiche de Honnold, e que será perseguido pelo mesmo até que este consiga escalá-lo sem cordas ou equipamentos de segurança. O doc vai, lentamente, desvendando toda a preparação de Alex de uma maneira bem instigante.
Inicialmente, os marcos temporais no rodapé dão a tônica de um filme que guarda clímax poderoso. A cada novo salto no tempo, concluímos como testemunhas mais uma etapa de treinamento do obcecado partícipe central. Apesar dessa gradação, o filme de Chin e Vasarhekyi não mira somente a catarse final, mas também assenta bases no seu desenvolvimento para que nos aproximemos de Honnold. Tornamo-nos íntimo dele, próximos de sua vida que, como bem explora a direção, assemelha-se a de um outsider. Honnold, apesar de não viver à margem do comportamento social típico, é bastante focado naquilo que mira, detendo um estilo de vida próprio, com crenças e valores bem evidenciados.
Em dado momento, no início do documentário, Alex é perguntado quanto ao medo da morte, quanto ao fato de a mesma sempre rondar sua atividade, digamos, radical. O mesmo responde que é no questionamento feito que mora o “espírito da coisa”. Ele sabe do extremo risco, da adrenalina que dispara a cada encaixe de pés e mãos nas fendas pedregosas. Entretanto, mesmo ciente, tem na mente uma ideia fixa. Interessante, ainda nessa ideia, que o filme mostre que não há muitas explicações para esse comportamento corajoso de Honnold, quando uma tomografia de crânio revela nele uma atividade diminuída das amígdalas cerebrais.
Enquanto em meros mortais estas são estimuladas com um mínimo de alteração nas ondas fisiológicas, em nosso protagonista é preciso uma dose cavalar de estímulo. Importante aspecto de uma direção que, além de revelar esse breve momento, ainda guarda espaço para relatos que tornem o documentário bastante intimista. A câmera é muito bem posicionada nos pequenos espaços para mostrar que, mesmo em pequenas dimensões, Honnold tenta aprimorar sua parte física. São cantos em sua van e espaços entre uma árvore e outra. Todos espaços reduzidos. Sua subsistência é mostrada numa cena que contém uma boa frase que, quando proferida, é captada de maneira certeira pelo documentarista atento: “minha alimentação hoje é chilli enlatado com ovo”. É um homem, não selvagem, mas que se vira com pouco, que não come da carne animal por uma questão bioética.
Entretanto, mesmo com várias dessas passagens que revelam um pouco de sua personalidade característica de um indivíduo com bastante autonomia e devoção à natureza que o cerca, a direção tem mérito em não tornar herói um homem que é apenas firme em suas próprias convicções. Um homem que, novamente interpelado, responde não a uma pergunta que queria conduzi-lo a um caminho sentimental. Honnold não prioriza o namoro, a paixão, sobre sua performance de risco. No máximo, trata em pé de igualdade.
A condução da dupla com a câmera na mão, contando com uma boa montagem e eficientes transições, ainda desvela o passado de Honnold, com um pai detentor da síndrome de Asperger, que falecera antes de presenciar a tour de force do filho, e com uma mãe respeitosa e orgulhosa de seu filho. No relato da mesma, a demonstração materna de uma pessoa que entende as motivações do filho e vibra com cada pé montanha acima.
Esses são alguns dos destaques de um documentário que, em seu aspecto formal, não é tão arrojado, pelo menos esteticamente. É bem preenchido com inserções ilustrativas na tela, – contendo capas de revista, desenhos das rotas na montanha – mas não foge à regra de uma lógica televisa. É um Nat Geo aprimorado para escopo maior. As cenas de abertura e as do clímax parecem feitas para a tela grande. E interessante notar como a exuberância dessas tomadas não vem de um trabalho artesanal, mas sim das próprias esculturas que a mãe natureza oferece. O fotógrafo responsável, nitidamente, soube escolher as melhores lentes para cada período do dia, visto que o filme percorre cada um deles. As cenas preparatórias para o gran finale mostram o último declínio de Honnold, antes de aceitar de vez o monstro de Yosemite, na escuridão da madrugada. O ápice vem na luz do dia, num majestoso cartão postal ensolarado. No total, quase 4 horas para que Alex escalasse todo o El Capitan.
Utilizando de vários recursos cabíveis no universo cinematográfico, dentre eles o time lapse, Free Solo ainda assim fica um pouco preso à formatação típica das telinhas. Algumas pessoas próximas a Honnold não impactam com seus relatos, mostrando que alguns minutos a menos fariam bem ao documentário. Contudo, Free Solo, além de uma experiência cativante, é uma obra que enseja reflexões. Seria anormal e isento de medo aquele que, na relação com sua própria natureza, crê em feitos quase impossíveis aos leigos? Será mesmo que Honnold é um homem cuja ambição diz respeito somente a uma satisfação pessoal? Muito embora o documentário deixe clara a resposta à essa pergunta, que sim, Alex não almeja ostentar sua proeza, fica a pulga atrás da orelha. No fundo, ele deve sentir dois pesos. O de uma baita sensação de dever cumprido e o de uma leve injeção dilatatória no próprio ego.
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