8,0
O texto pode conter spoilers sobre a trama
A princípio, um plano longínquo que, através de galhos, entrevê uma igreja. Um demarcador temporal e espacial surge na tela. O ano é 1919, e antes que qualquer outro localizador do pós-primeira guerra se anuncie, a colorização abre espaço para o preto e branco. Acima do vestuário de época, das carroças, refeições e qualquer outro signo que (re)crie uma ambientação e costumes, a presença quase constante do preto e branco evoca uma texturização que é tão clássica para a obra fílmica que remete ao passado quanto à nebulosa em tela que precede o estado onírico. Mas eis que, para Frantz (idem, 2016), Ozon vai além: a duplicidade simples das cores se apercebe como braço complementar à narrativa que beira o classicismo nas suas maneiras se contar. As aproximações, os leves travellings, todo um jogo operístico de deslizes da câmera que retomam o diretor de carreira irregular de volta a uma das preocupações primordiais de seu ofício, e que parecem ter ficado lá atrás: compor planos e impô-los coerência com o todo.
Retorna também o talento bamboleante do diretor em, a partir de um ponto na narrativa, estilhaçá-la em direções previstas e imprevistas até que o último segundo se encerre. Só que Frantz traz uma adição: o estrangeiro francês (Niney) que vem visitar o túmulo do soldado alemão que dá título ao filme e perturba toda a placidez familiar de pai, mãe e viúva não é de início percebido com os mesmos olhos por todos que o veem. Diante da tríade de personagens, sobretudo aos olhos dos pais do falecido, e de nós que o assistimos, Adrien não é o mesmo. A hesitação da voz, a trepidação dos relatos, a pressa súbita em ir embora, o desmaio ao tocar com o violino que não lhe pertence, mas a seu amigo morto: Ozon tece toda uma cadeia de reações sutis à rememoração que a intrusão do francês na família provoca. Para eles, agarrar-se ao fragmento do passado do filho/marido com ternura; para nós, o mesmo, ainda que com a emancipação privilegiada da suspeita plantada como semente.
Mas é este mesmo passado que fará o estrangeiro regurgitar a farsa que encapuzava sua vinda. Relatar a mentira à viúva (Beer) com quem havia criado uma relação frágil de encantamento e possibilidade de alegrar-se novamente é o que causa uma dobra à narrativa cujas implicações vão além do aprofundamento do drama. Ainda que futuramente perdoado, o golpe da subnarrativa imaginária que ia se proliferando tem o efeito de uma multiplicidade. O Frantz que o Adrien cria não é o mesmo que ele revela no episódio único da trincheira, tampouco aquele que paira como fantasma (o título não é o de um personagem que sequer aparece 6 vezes por acaso) entre o romance que se delineia entre viúva e estrangeiro. Ele é criação, amargura e empecilho ao mesmo tempo – para não citar outras pluralidades.
A alvura dos rostos em close que Ozon captura é sempre uma espécie de primeiro plano para a fagulha que Frantz passa a representar. O morto que incita a agonia dos ultrarromânticos também encabeça o romance entre eles. Daí então tudo se justifica e se alimenta. O luto do par se transmuta na melancolia do desencontro constante, em tudo aquilo que, quando precisa ser dito com urgência, já se tornou tarde demais, numa espécie de paixão romântica de segunda geração: gutural e afetada como a fotografia os enclausura. Culpados e agonizantes, como O Suicidado de Manet, pintura que funciona como núcleo irrealizado dos amantes que não conseguem se matar nem permanecer unidos. E ainda que o final colorizado tenha a força de um sopro de esperança que novamente joga com o espectador, os louros de Ozon estão justamente na composição das micro-tragédias: as partidas, os soluços, os desabafos, os corpos que padecem quando não é mais possível tocar pianos e violinos, quando o evocativo da arte é um fardo denso demais para se carregar.
Belíssimo texto. Assistirei ao filme no final de semana sem falta.