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Críticas

Cineplayers

O tão distante de Kurosawa

10,0

O cinema de Akira Kurosawa tem uma habilidade particular de dialogar com inquietações globais (ou que, ao menos, pretendem-se globais) a partir das localidades da História japonesa. Tal diálogo não é algo que aparece por acaso ou de maneira ingênua na filmografia de Kurosawa. A cultura japonesa, afinal, principalmente quando levamos em consideração as relações políticas do país com boa parte do leste asiático, não pode ser pensada apenas a partir de uma localidade. Em outro sentido, também, o modo como o cineasta reconfigura o arquivo do faroeste hollywoodiano com histórias de samurai e produz um dos conjuntos mais impressionantes de adaptações de Shakespeare para o cinema (sempre enfaticamente localizando as suas narrativas no Japão), sugere, mais do que uma influência, uma apropriação das tramas do globalismo.

E essa apropriação foi famosamente correspondida. Os Sete Samurais (Shichinin no samura, 1954), talvez seu filme mais conhecido, foi inspiração direta para filmes hollywoodianos tão diversos quanto o faroeste Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, 1960) e a animação Vida de Inseto (A Bug’s Life, 1998). Mas é A Fortaleza Escondida (Kakushi-toride no san-akunin, 1958), também de Kurosawa, que aparece como uma das principais referências visuais e narrativas para a criação da galáxia tão tão distante de Guerra nas Estrelas (Star Wars, 1977).

As imagens de abertura de A Fortaleza Escondida já nos dão uma dimensão da força avassaladora da visualidade do filme – visualidade esta que, mais tarde, ajudaria a redefinir o cinema hollywoodiano. Num espaço deserto, através da poeira e areia, caminham duas curiosas figuras, Tahei (Minoru Chiaki) e Matashichi (Kamatari Fujiwara). Quando capturados, os dois alegam ter chegado atrasados para uma batalha entre dois clãs rivais e são levados presos pelo exército do clã vencedor. Esses dois personagens se desenvolvem, ao mesmo tempo, como expressões trágicas de uma circunstância de guerra, pobreza e fome e como clowns de um tipo, essa autoridade cômica que aparece nas peças de Shakespeare com o papel de narrar os acontecimentos da trama.

Tahei e Matashichi cumprem, de fato, esse duplo papel. É a partir da experiência deles que penetramos nesse universo de conflito e guerra e que esse mundo se abre diante dos espectadores. A Fortaleza Escondida tem um aspecto de fantasia nesse sentido, no que a aventura da dupla envolve encontros com situações grandiloquentes – de ouro descoberto, princesas foragidas e uma fronteira entre dois povos em guerra –, trazendo para a visualidade do filme um tecido do sublime. A sua forma visual, assim, atenta para a qualidade muito arquetípica desse universo fílmico, em que os personagens parecem se organizar muito naturalmente dentro de uma narrativa que é anterior a eles e que se repete através do tempo e do espaço – ironicamente, isso seria reafirmado uma vez que esse arranjo é refeito para narrar uma história sobre impérios intergalácticos e espaçonaves rebeldes.

Se Tahei e Matashichi são nossos olhos e ouvidos por dentro desse mundo – descobrindo-o com uma ingenuidade sem inocência, do mesmo modo indiscreto como pode ser uma criança curiosa que ouve pela primeira vez um conto de fadas –, o general Rokurota (Toshirô Mifune) e a princesa Yuki (Misa Uehara) são os rostos que esperaríamos encontrar em um longo caminho por uma terra de fantasia (a fantasia, aqui, é acionada no sentido de que essa terra é imaginada, é produzida como imagem). O general é um militar derrotado, liderando agora uma missão que exige dele um outro tipo de habilidade e uma outra expressão de coragem. A princesa, em sua peregrinação, deve reconquistar esse lugar de governança a partir de uma nova e dura compreensão do que é essa terra que governa e de quem são as pessoas que a habitam.

Como esse grupo, Kurosawa articula uma jornada do herói sem um herói, e é o percurso particular de cada personagem, em conjunto, com seus próprios anseios e limitações morais, que age sobre a história desse mundo. Desse modo, o cineasta cria um épico que é, eu diria, mais moderno ainda do que as narrativas ditas modernas que depois se inspiraram nele. Tem algo muito singular da filmografia de Kurosawa que se apresenta fortemente em A Fortaleza Escondida, uma capacidade de criação sensível do reino “tão distante” do qual tanto ouvimos falar nas histórias fantásticas que se originam em diferentes países e que é sempre tão elucidativo do lugar que se dispõe a imaginar tal distância.

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