O vencedor de Berlim observa o mundo hostil por trás do bucólico.
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8,0
Sobram frames impactantes no novo filme de Gianfranco Rosi, mas um ficou especialmente comigo após a sessão e ainda hoje: o close em uma lágrima de sangue, registro do diretor ao olhar de um imigrante africano ao chegar na bucólica ilha de Lampedusa, na Itália. Rosi inicia 2016 entrando para a história do cinema, pois nenhum outro diretor ganhou dois dos maiores festivais europeus com documentários. E se a polêmica decisão em Veneza 2013 ao premiar seu Sacro GRA ainda não tinha cessado, pode ser que agora se reconheça o valor desse veterano documentarista com essa produção urgente e muito sincera que saiu de Berlim com um Urso reluzindo ouro. De qualquer maneira, a análise de Fogo no Mar merece e deve passar ao largo de premiação, dado seu caráter político tão indispensável.
A ilha de Lampedusa atualmente vive um impasse. Desde os anos 80 transformada em ponto turístico que atraiu artistas e políticos, seus poucos mais de 20 quilômetros de extensão hoje estão no centro de uma das mais graves questões humanitárias mundiais, por estar na linha de travessia que os imigrantes africanos trilham para fugir de sua guerra civil, seu genocídio. Divididos entre manter sua rotina e tentar amenizar o sofrimento de tantos que chegam, seus 6 mil habitantes hoje são alvo de represália por parte do governo e das suas características turísticas, que caem a cada novo barco resgatado com sobreviventes de uma viagem muitas vezes fatal. É pra essa direção que Rosi escolheu apontar sua câmera, mas não só pra essa.
O filme que abriu o Festival 'É Tudo Verdade!' edição 2016 vem nos lembrar uma marca forte que seu diretor tinha causado há 3 anos, quando de sua vitória em terras italianas com o doc que investigava a vida dos moradores que rodeiam o imenso anel rodoviário que entitula seu filme: são as pequenas coisas que nos tornam humanos. Rosi tem sim interesse em provocar uma discussão sobre o estado das coisas na vida de pessoas cujo interesse era único em viver suas vidas, mas que foram pegas num supetão humanitário que, o filme mostra, não tem como ser de outro jeito.
No centro da narrativa, o menino Samuele representa tantas contradições e idiossincrasias que fica fácil de adivinhar porque Rosi resolveu repousar sobre ele. Sua família está em todo o filme: seu pai é o pescador típico da região, sua avó é a matriarca de sua pequena estrutura familiar, muito religiosa e ativa, e seu tio é o apresentador do programa de rádio local, um grupo de pessoas tão heterogêneo quanto pode ser uma mesma família. Mas é em Samuele que a lente parece colar, e revelar; junto com ele e sua família, vemos os muitos lados da cruel moeda atual protagonizada pelos europeus. Desde o choque da recepção para com a chegada dos imigrantes, até a absoluta falta de traquejo diante de movimento tão grande, passando pelo desagrado de parte da população européia diante desse novo êxodo, a família de Samuele é o resumo de tudo, sobrando para o menino de 12 anos as mais impressionantes passagens e situações, muitas impressas no seu olhar juvenil, tão inocente quanto frio.
Rosi se preocupa bem mais com a realidade da ilha e do impacto que a chegada dessas pessoas em busca de abrigo provoca, muito mais do que com os próprios refugiados, que tem em seus rostos, corpos, lágrimas e semblantes tudo que precisa para a situação ser toda tão complexa e cheia de camadas. O diretor se cerca do prosaico de cada cotidiano para lentamente, entre uma canção ou outra, explicitar o olhar dos moradores para a sombra daqueles novos habitantes, um misto de hóspedes e intrusos que vez ou outra fica explícito demais para não nos espantar. E na cena seguinte, um novo abraço no prosaico e na tranquilidade, ainda que permeada por sutis posicionamentos.
A mercê de uma comunidade ainda muito restrita de condições na área de saúde, ensino e até mesmo nas ligadas ao turismo, a ilha lida com essa chegada dos barcos a 20 anos, e desde então tem observado as autoridades e os políticos se afastarem progressivamente de sua região, os relegando a uma subsistência de recursos antiquados e parcos. Essa também é do interesse de Rosi, ressuscitar um lugar de beleza tão naturalmente simples. Para isso, o filme segue Samuele em suas empreitadas por Lampedusa, registrando momentos de pura singeleza que abrem o leque de um personagem tão complexo como esse menino (cujas reações não podem ser muito reveladas de tão intrincadas e expressivas), ao mesmo tempo em que descortina um lugar que hoje é o habitat tanto da esperança quanto do desconhecido, que explode em espasmos de fúria e compaixão paralelos.
Obra polêmica,brilhante e inquietante.