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Críticas

Cineplayers

Um visceral registro dos últimos dias em vida do mestre Ray.

8,0

O que Ray e Wenders tramam em O Filme de Nick é impressionante, visceral e provavelmente inigualável. Se o fascínio do cineasta alemão pela morte do Cinema tomaria-lhe a obra anos mais tarde, sua melhor e mais consistente observação sobre o tema continua aqui, neste pequeno exercício conceitual em que ambos exploram os limites da mídia como forma de registrar os últimos momentos em vida de Nick, pouco antes de ser abatido pelo câncer que lhe fragilizava há anos – a morte literal não é da própria arte, mas de um de seus mais importantes fundamentadores; cabe então à dupla radicalizar estética e narrativa para provocar a ruptura do classicismo tão de perto sonhado em deixar para trás.

Há muito pouco de parâmetro artístico se comparado O Filme de Nick a qualquer outro filme feito até então. O emblemático esquema de filmagens intercaladas, diegéticas e extra-diegéticas, em película ou vídeo, naturalmente metalingüísticas ou plenamente ensaiadas, como se surgissem como um novo em meio ao processo maquiavélico de manipulação, utiliza muito das experimentações de Welles em seu feroz Verdades e Mentiras. Wenders e Ray deixam claro jamais se importarem com o quanto de verídico restará ao corte final – Ray sequer participou da edição, por motivos óbvios – e nem mesmo isso é necessário para transformá-lo em um melhor ou pior filme. Se vemos Ray esbravejar enquanto acorda ou participar de um sonho de Wenders como figura mística, é natural que tudo faça parte da visceralidade conceitual, do choque.

E é choque duplo, esta ode pessoal – fica difícil, na realidade, separar o que é de Wenders e o que é de Ray, ao passo que Ray é o próprio filme – ao diretor de tão importantes filmes como No Silêncio da Noite, Johnny Guitar ou Sangue Sobre a Neve. Ao mesmo passo em que acompanha-se uma impressionante coleção de registros de ideais, pensamentos e, no fundo, um verdadeiro acerto de contas de Ray, uma figura marcada pelo mau trato do tempo – sua aparência em certos momentos é assustadora, desgastada, cansada, apática e sempre salientada de maneira abusiva e intrusiva pela câmera, muito próxima ao pensamento de envelhecimento, de morte, que, afinal, era seu interesse – vive-se um processo de constante readaptação à linguagem, de cuja origem é um mistério.

É verdadeiramente impossível separar a verdade da encenação em O Filme de Nick, mas tampouco importa. O câncer de Ray é verdadeiro, e suficiente. Seus gestos, olhares, voz envelhecida, feição destruída pela doença, mas sem jamais largar o cigarro – a pose clássica de Ray, encarando os atores segurando o pito, é cena marcante do filme dentro do filme, enquanto ele mesmo tenta dar prosseguimento a testes de elenco para o filme que, segundo o material restante, pretendia fazer – são o próprio filme. Tudo está ali, em um plano, um gesto ou olhar. Ao afirmar, durante uma exibição de Paixão de Bravo, que jamais trabalhava com roteiro pronto, que seus finais ditavam o começo, logo dava a dica do que realmente move o filme. Ele sabia estar à beira da morte o tempo todo, tanto é que este foi o fato que lhe mobilizou a chamar Wenders para o projeto. Sabia como terminaria, e assim pensava o resto. Se pode parecer um abuso de Wenders permitir tão maldosas imagens após a morte do Mestre, esquece-se a moral. Fica clara a necessidade em se preservar os desejos de Ray, tanto quanto é visível que a alma do projeto era simplesmente ele.

Se, ao final, a experiência é desgastante, passando-se quase que por um processo de anti-filme – O Filme de Nick é lento, esquisito e aparentemente muito pouco pensado narrativamente no sentido de permitir fluidez às imagens -, temos certeza de que tudo era proposital. Pensa-se o Cinema de outro jeito, vive-se outro momento, uma única experiência. É muito menos um filme do que Cinema e sua interseção com a vida, com o efêmero, pura e simplesmente.

Wenders faria logo em seguida o genial O Estado das Coisas, dessa vez com Samuel Fuller – se O Filme de Nick é a morte, O Estado das Coisas só pode ser o funeral. Poderia ter parado por aí. Já havia discursado – e muito – sobre o fim dessas coisas, e o fruto da insistência acabou sendo bem maior do que o imaginado: de tanto falar sobre a morte do Cinema, Wenders acabaria matando o seu próprio. Cut, Wenders. Jamais esqueça a hora de cortar – até na morte, Nick Ray ensina.

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