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Críticas

Cineplayers

Diretor, roteirista, ator: os Seltons não se encontram.

6,0
Às vezes de tanto homenagear e buscar referências, e as mesmas não se comunicarem entre si, um cineasta pode começar a encontrar dificuldades em ter uma voz própria, coerente e constante. Não podemos acusar Selton Mello de não ter talento ou de não trabalhar com os melhores profissionais disponíveis no mercado, nada disso seria justo. Na entrega desse seu terceiro longa, o poético O Filme da Minha Vida, Mello vive novo momento de estabilidade profissional, com belos trabalhos como ator paralelos à sua paixão de realizador; sobra paixão em seu novo filme. O que talvez possa começar a ser observado são suas inspirações temáticas e imagéticas, que teimam aqui em não ganhar sentido maior que os de uma homenagem de um fã maravilhado com seus ídolos, alguém talentoso e capaz, mas ainda assim assolado por tanta informação que o excesso delas embaça o roteiro escrito a quatro irmãos mais uma vez, por Mello e seu amigo habitual Marcelo Vindicato. Na ânsia de acertar tantos gols quanto possível, contou com os melhores jogadores a disposição para um jogo que termina sem vitória. 

Em Feliz Natal, a atmosfera amarga de típicas reuniões familiares foi claramente abençoada por Lucrécia Martel e seu O Pântano, um projeto de estreia ousado e seguro de si; com O Palhaço, a infância de Selton foi o alvo, mas não dá pra negar a influência da inocência que Chaplin e Fellini trouxeram à bela atmosfera desse seu grande sucesso, inclusive de bilheteria. O que seu novo filme traz é mais um mergulho no cinema italiano, tanto Fellini quanto o Tornatore de Cinema Paradiso e Malena, numa narrativa que esbanja nostalgia pelo passado e a busca por um entendimento particular de nosso crescimento pessoal, tanto etário quanto emocional. Com elementos estéticos que não apenas situam o filme na década de 60 onde é passado como tentam promover uma viagem visual para lá, Selton tecnicamente entrega o prometido a um projeto que almeja nos situar no passado de maneira onírica e delicada, com um Walter Carvalho mais uma vez assombrando nas lentes. Direção de arte, figurinos e a bela trilha incidental de Plínio Profeta completam o quadro geral, de alcance indiscutível. 

Os excessos começam a ser observados quando se percebe (rapidamente até) que o corpo de canções escolhidas para o filme ocuparão toda a sua extensão, e por mais lindas que sejam as músicas da Jovem Guarda, a voz de Charles Aznavour e tantas outras, não cessarão em toda cena que não houver diálogo. E Selton construiu uma atmosfera de imagens, sons, sentidos e delicadeza que deveriam prescindir a experiência do áudio; quase sentimos o filme clamar pelos acordes suaves de Profeta, quando os microfones não param de trabalhar. O mesmo podemos dizer do trabalho de Carvalho, que ultrapassa o limite da beleza em determinados momentos quando parece chegar no limite de sufocar o todo, imerso numa paleta ostensivamente perfeita, em enquadramentos tão milimétricos que simplesmente abafam a história contada muitas vezes. Uma história que com outras escolhas teria sido muito menos explícita e muito mais sentida, e é aí que percebemos que talvez falte sutileza ao trabalho. 

E aí entra a observação ao roteiro, que nos faz atentar para todo esse entorno; provavelmente se o material escrito correspondesse, o filme não fosse tão sufocante. Se em seu filme anterior Selton deixou a poesia correr solta em imagens e pensamentos, dessa vez a fórmula desandou e produziu cenas canhestras. De estrutura a usar e abusar das metáforas e lições entre seus personagens e situações, Selton verbaliza tudo até esgarçar a narrativa com um sem fim de "poemas" narrados, e explicados, e se não estiver ainda bem entendido, ele ainda os transforma em imagem. A vida do protagonista Toni Terranova (saído do livro de chileno Antonio Skarmeta, 'Um Pai de Cinema') é observada com os olhos da poesia visual e também da forma tradicional, e por mais beleza e doçura que o filme queira nos arremessar, até os possíveis momentos de dor são tão esteticamente elaborados que lá pelas tantas as intenções foram esvaziadas. 

É esse mesmo carinho e talento que salvam o projeto, porque ao final, mesmo de maneira exacerbada, sobra talento a todos os envolvidos e nada é mal feito. Talvez se a atmosfera de sonho atribuída às memórias de Toni forem absorvidas com o mesmo espírito que Selton empregou, talvez se o foco de observação for o lado onírico e apenas ele, talvez se deixar o trabalho do elenco for também ele sentido em seus silêncios particulares... talvez exale alma. Dos olhos de Johnny Massaro, por quem o filme é completamente e assumidamente apaixonado, saem a vida que é atribuída aos tantos diálogos expositivos; dos olhos do ator Selton Mello, em trabalho diametralmente oposto ao do roteirista Selton Mello, saem a sabedoria que faltou ao diretor dessa vez; dos olhos de Bruna Limzmeyer, cujo personagem não condiz com seu talento, saem a inocência e a doçura tão obsessivamente procurada; por fim, dos olhos de Martha Nowill, que não tem 10 minutos de tempo de tela, sai a real poesia, a real beleza e o real encantamento que o filme nos propõe. Se tivesse mergulhado ainda mais nesses olhares, o diretor Selton Mello poderia ter um filme menos bonito para dentro, porém muito mais bonito para fora. 

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