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Críticas

Cineplayers

Eugène Green, o jocoso e o sagrado.

8,5
Sobre a recepção do Anjo do Mal (Pickup on South Street, 1953), de Samuel Fuller, nos cinemas Parisienses, discutiu-se insistentemente o suposto anti-comunismo presente no filme, que trata de um assalto não-intencional de segredos do governo americano, e ao qual Luc Moullet, então crítico dos Cahiers du Cinéma, rebate com uma discussão a uma problemática crucial ao cinema, que transfiguro aqui num linguajar assumidamente simples: se discordo moral, ética ou ideologicamente de um filme (na verdade, sob qualquer parâmetro) por seu conteúdo, é possível, de acordo com ponto de vista particular, invalidá-lo? Em defesa a Fuller, Moullet discordará, dizendo que ''nem os enquadramentos, nem a mistura, nem a montagem são moscovofóbicos''. Tensiona forma e conteúdo. Mas, dizendo de maneira ainda mais transparente: tratando-se de um tema que não me é caro, diante do qual tenho ojeriza ou cuja representação não tomou os moldes que acredito que deveria ter tomado, é permitido que deteste tal obra? Decerto sim, mas não se fala aqui de gosto ou desgosto. Na verdade, é bem neste ponto onde se quer chegar: apreciação e reconhecimento de valor, por sorte, podem entrelaçar suas mãos, mas pouco provavelmente andarão juntos. 

Tudo o que foi dito na verdade tem pretensões de defender O Filho de Joseph (Le Fils de Joseph, 2016), de Eugène Green. Antes que a crítica possa abraçá-lo pelas vias do maniqueísmo simplista ou da narrativa forçosamente alicerçada pela simbologia cristã, cuja existência discordo para ambos os casos, é preciso tomar Green como autor, e a obra inserida num ponto de refinamento dentro de sua própria filmografia. Mas se se fala em ''refinamento'', este não está necessariamente atrelado a uma elevação estritamente estética das qualidades barrocas, teatrais ou evocativas de uma religiosidade; é certo que os aspectos ainda estão ali, o dualismo de trajetórias e interioridades ainda inspira os personagens (matar ou não matar o pai?, revelar ou não a paternidade ao filho?), o classicismo musical, embora enxotado pelos defensores da arte menos erudita, permanece como assombro de uma sacralidade gestual, declamativa e afetada – só que a religiosidade aurática típica de seu conjunto desce, agora, à trama quase novelesca e não prevista para o diretor.

O impasse narrativo que deixa infiltrar o pano de fundo bíblico, aparentemente emprestado de uma vontade popularesca demais (o garoto que procura o pai e acaba com seu tio ''vagabundo'' e mãe solitária) e, como dita a ordem interpretativa de Green, teatralizado com seus atores sempre recitativos e tesos, com os rostos prestes a atravessar o quadro e olhando diretamente para nós e seus ouvintes ao mesmo tempo; este motivo para o acontecimento fílmico nunca deixou de ser emoldurado, encenado e injetado de uma jocosidade e uma de uma elevação, sendo que este segundo agora só se dará pelos encontros do sagrado com o mais mundano e vulgar possível. Como se Deus descesse dos céus para tocar a tragicomédia de uma família desgraçada pela baixeza de um pater incoerentemente chulo. 

É, aliás, aí que encontramos uma guinada irônica para aquilo que o diretor havia de certa forma só pincelado em A Ponte das Artes (Le Pont des Arts, 2004), devido à falta de abertura quase completa que a obra havia deixado para qualquer sustentação de uma narrativa paralela ou mesmo contaminada sobre o meio artístico erudito parisiense e suas arrogâncias grotescas. O pai, dele e de outros 4 filhos relegados, editor de renome, é a ponta de amarra com a pomposa sociedade literária francesa, decadente, excessivamente maquiada, artificial e fofoqueira, delirante mesmo sobre que autores estão vivos; enquanto do outro lado, os pedaços da família em devir discursam (pois não há falas ou diálogos num sentido convencional em Green) sobre a voz interior de Deus e os desvios de um caminho de bondade. Paralelamente, o quadro do Sacrifício de Isaque, de Caravaggio, repousa no quarto do menino. O anjo que vem pedir a Abraão que não mate seu filho e, na história religiosa, dissolve o conflito interno do velho. Duas faces de um mesmo impasse humano; Abraão bíblico e Vincent, o adolescente ''qualquer''.

Retorno, pois, ao início, à não-obrigatoriedade de uma afinidade com o cristianismo ou a arte erudita para que eu (nós), que olho e faço juízo de valor, me entregue a isto que o cinema, em âmago, propõe: uma história. Porque se há o enquadramento simétrico e diagonalmente angulado numa perfeição das formas, se o olho atravessa a tela para reconhecer que eu existo, se há o corpo rijo e a poesia falada, se as coisas se fazem pelo verbo, como Vincent se faz filho pelo Joseph que assim o denomina, interessa mais que a câmera e sua encenação cristalizem a pequena narrativa tornada bíblica, quer ela me apraza ou não.

Comentários (1)

Douglas R. de Oliveira | segunda-feira, 02 de Janeiro de 2017 - 09:53

Grande análise, enriquecedora. Assisti o filme ainda por esta amanhã, meus sentidos pululam e muito provavelmente fazem deste Green meu favorito, por razões pessoais, ao lado de Ponte.

Grande análise, não custa repetir.

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