8,0
Raras vezes o circuito de cinema tem o privilégio de descortinar propostas não apenas novas, como também importantes e bem-vindas; parece clichê e é, mas ele se faz necessário diante da possibilidade cada vez menor de encontrar diferenciação de segmentos em tempos de crise como a atual, onde a aposta é descartada em detrimento à segurança. Ao ter contato com o longa de Albertina Carri e constatar seu arrojo de linguagem, de proposta dramática e de sua ousadia temática e imagética, a primeira opção de observação deveria ser o privilégio por estar diante de tamanha audácia, ou cobrar do produto final não apenas coerência, como também clareza dramatúrgica que desse uma moldura de correção a uma obra que claramente abdica de uma?
A personagem que se masturba em close logo no início de projeção é a mesma que declara logo a seguir em off "o problema não é a representação do corpo, mas como esse corpo vira representação e paisagem na frente da câmera", e partir desse seu discurso o filme se posiciona e tenta travar diálogo, com uma busca progressiva de desconstrução de signos de arquétipos estéticos femininos, onde também logicamente um vasto discurso feminista será empreendido através da imagem, com muito mais força do que a própria palavra. Não é de se estranhar que essa mesma personagem é uma diretora que acaba de voltar à sua cidade com uma ideia de fazer um filme pornográfico de teor lésbico, e esse alter ego que Carri constrói aos poucos começa a explorar as muitas possibilidades de realização, ao mesmo tempo em que tem sua própria relação com a namorada testada.
Apresentado em esquema de road movie, As Filhas do Fogo não é apenas o título do filme, como também a alcunha que ganharam as primeiras mulheres a embarcar para regiões geladas, como a Antártida, apresentadas com o pioneirismo que as próprias personagens pretendem aos poucos assegurar também para si. O casal protagonista antes de cair na estrada (com a desculpa narrativa de visitar a mãe de uma delas) se envolve com um terceiro elemento, sexualmente e amorosamente. Logo, o casal se transforma em trio e cai na estrada. Ao longo da viagem, elas passam a dar carona à todas as mulheres que queiram a elas se juntar e assim vão criando um microcosmos ao mesmo tempo ideal para elas como completamente onírico e sensual, agregando tipos físicos dos mais diversos para provar uma ideia de diversidade completamente pertinente ao nosso tempo, e didaticamente pontuando a gama de possíveis personas femininas que podem caber no pensamento, sem estereotipar nenhuma.
Sem medo de provocar, Carri reivindica pra si a atividade de sua protagonista e aos poucos constrói ela mesma sua própria visão de filme pornô, começando da forma mais delicada e íntima até ir livrando gradualmente os mínimos dogmas que pudessem existir naquele universo ao propor uma visão sem qualquer pudor do poliamor, da prática do amor livre e de uma vida em comunidade plena de prazer. Com cenas conceitualmente polêmicas (como uma orgia no altar de uma igreja, com imagens católicas por testemunhas de um jogo de iniciação), As Filhas do Fogo é parte integrante de um movimento de cinema que une performance e captura de imagens, dando tanto relevo às suas situações e personagens quanto ao balé de corpos e imagens que é criado para dar ênfase à um pensamento. Aqui no caso parece ser uma retirada dos estigmas que o feminino ainda carrega, colocando suas integrantes dentro de uma linha de normalidade, e que nenhuma das peoas desse tabuleiro deixem de conquistar protagonismo em algum momento, com seus corpos e rostos fora dos padrões e tratados em igual condições.
Se no ato final impera a exacerbação do experimentalismo estético e narrativo, é porque o longa de Albertina Carri desde o princípio trafegou por esse caminho até que sua proposta fosse completamente assimilada pelo público. A partir daí, as perguntas começam a não precisar de respostas e o longa se encaminha para coroar essas performances em seus estados naturais, sem cobrar significação a elas. Trata-se portanto da constatação de um grito de liberdade, de uma identidade fílmica transgressora para cobrar uma postura tanto de si mesmas quanto da própria indústria, com seu take final coroando a liberdade que cada uma das personagens adquirem ao longo do filme e que precisam firmar enquanto alcance de direitos, não só no cinema, como principalmente na sociedade.
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