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Críticas

Cineplayers

As provenientes da insânia.

6,5
Quando o mexicano Michel Franco apareceu com seu olhar sobre o bullying em seu controverso e inclemente Depois de Lúcia (Después de Lucía, 2012), muita gente questionou suas intenções narrativas que traziam, sim, aspectos sociais a cerca do tema, mas que ignorava particularidades comportamentais de sua personagem, Lucía. Às vezes parecia um filme muito mais interessado em mostrar o show de horrores que sua protagonista viria a sofrer. Seu filme seguinte, Chronic (Chronic, 2015), trouxe um enfermeiro instável, ainda que adorado. Esse As Filhas de Abril prova que Franco, roteirista e diretor, tem predisposição a conceber personagens afetados que tendem a ter diferentes camadas, fazendo-os absolutamente questionáveis moralmente, socialmente e psicologicamente.

A cena inicial traz uma mulher na cozinha, Clara, ouvindo o som de uma transa. Em pouco tempo ela sai de cena. Outra entra. Valeria. Nua. Pouco a pouco, informações visuais constroem toda a cena e o contexto onde essas duas personagens vivem. São as filhas de Abril, mas Abril não está ali. A cena é bastante interessante, vagarosa e bem dirigida a partir de um roteiro que obriga o espectador a se ater a detalhes simples. O filme emprega tempo suficiente para que aquele microcosmo seja compreendido. Tudo é bastante naturalizado, num estilo similar ao de Éric Rohmer. Um homem logo aparece. A barriga de Valeria denuncia uma gravidez. 

Michel Franco condena seus personagens ao absurdo. Mas o absurdo parece tão real. Então estamos diante um filme cuja espiral paradoxal de comportamentos de seus personagens incidem no que é mais valioso no roteiro: a desconstrução dos paradigmas estabelecidos sobre cada um. É um filme de vários personagens que poderiam ser apontados de diferentes maneiras por diferentes óticas, favorecendo diagnósticos múltiplos em pontos de vista díspares. São as multidimensões autorais, uma assinatura em edificação. O melhor em tudo isso é a surpresa dedicada, as reviravoltas do roteiro constante que trabalha com inconstâncias narrativas. É o propósito de seu competente realizador que ainda não entregou um grande filme, mas que também nunca foi descartável.

Os bons atores frente à competente direção se destacam nesse filme de tempo e ritmo bem delineados, de revelações paulatinas. Emma Suárez enquanto Abril é um universo de possibilidades e quando definitivamente entra em cena, ancora o filme até o ponto em que parecemos estarmos diante de uma... novela?! Inspiração mexicana? Poderia ser o argumento para uma dramaturgia televisiva. É nesse ponto que a obra é ferida, em se prolongar dentro de seu próprio tempo narrativo. Quase saímos para fora do filme, no entanto permanecemos atentos por sermos fisgados ao desatino arranjado no emaranhado de conflitos no núcleo da família de Abril e suas filhas.

Visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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