Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Quando o instinto é preferível à compaixão.

8,5

É uma das mais belas cenas do ano: Marion Cotillard e a baleia. A atriz francesa interpreta Stéphanie, uma adestradora de baleias que sofre um acidente durante uma apresentação e perde os pés. Chega a pensar em suicídio. É obrigada a reconstruir toda a sua vida. Um dia, porém, resolve visitar, sem guardar rancor, os animais que um dia amou, mas foram responsáveis por destruir sua existência. A cena é bela porque mostra que o ser humano é capaz de odiar aquilo que ama – ou vice-versa, amar aquilo que odeia.

Trata-se de um dos grandes filmes de 2012, Ferrugem e Osso (De rouille et d’os), mais um bom trabalho na carreira do diretor francês Jacques Audiard, que já tem no currículo os ótimos De Tanto Bater, Meu Coração Parou (De battre mon coeur s'est arrêté, 2005) – 8 prêmios César, o Oscar francês, mais um Urso de Prata especial no Festival de Berlim para a música de Alexandre Desplat (revelando o músico às plateias internacionais)  – e  Um Profeta (Un prophète, 2009), Grande Prêmio do Júri em Cannes, mais 9 César e uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro.

Neste De rouille et d'os, Audiard é bastante discreto na sua maneira de narrar. Sem firulas ou frescuras, bota sua força criativa a serviço de contar a história e desenvolver suas personagens, dirigindo com maestria seus atores. A apertada agenda de Cotillard não permitiu-lhe ensaiar com a atriz antes das filmagens (eles fizeram boa parte da leitura do papel nas viagens, no avião), mas o resultado é ainda assim intenso e, por vezes, aterrador: Cotillard está mais sutil aqui do que no dramalhão de Piaf – Um Hino ao Amor (La Môme, 2007). No mais, o belga Matthias Schoenaerts também funciona à perfeição, dando uma incrível fisicalidade ao pai ausente e frustrado lutador de boxe Alain.
 
É um diálogo entre os dois que vai gerar a magnífica cena da baleia. Alain prepara-se para mais um luta e Stéphanie lhe diz que, se for pelo dinheiro, ela lhe daria o montante e ele não precisaria apanhar daquela maneira (não é boxe profissional, mas sem luvas). Alain retruca dizendo que não era só pelo dinheiro, ele fazia porque gostava também. “Como você e as baleias”, diz, para choque dela. “Sim, e veja como eu terminei!”, responde, indignada - ao menos a princípio. Depois, como vinha fazendo desde que perdera as pernas, é obrigada a reavaliar e decide, então, voltar ao parque aquático e, por uma última vez, fazer os gestos e guiar as baleias.

Assim, a orca “assassina”, imensa, assustadora, com seus dentes à mostra, reconhece e vai ao encontro da antiga treinadora, agora amputada, no tanque. A cena provoca várias emoções no espectador, seja de ternura e repulsa, ou mesmo admiração: afinal o cinema não está tão mal assim, se ainda consegue produzir cenas como essa.

Audiard acerta em quase tudo. A maneira com que utilizou os efeitos especiais para deixar Marion Cotillard sem pernas é um dos grandes trunfos do filme, pois, quando estão juntos, nus, os corpos dos atores emanam uma tensão asperante: ele, desinibido, apolíneo, loiro, saradão; ela, desajeitada, faltando pedaço. Stéphanie no início ainda escondia a prótese dele, no início, em quartos com luzes bem apagadas, até precisar ir ao banheiro… Ao ser carregada por ele e fazer as necessidades em frente ao parceiro nu com pênis flácido, perderá a inibição com o corpo dilacerado (cena lindíssima).

Assim, Ferrugem e Osso tem seus pontos altos nas cenas em que ele a admira de soslaio para que ela não perceba – ficaria encabulada, não gostava que ninguém a olhasse fixamente; Marion Cotillard está nua em cena mesmo completamente vestida. O que fascina é a dor desses dois seres humanos fadados a serem para sempre incompletos: o lutador que teve a mão quebrada para salvar o filho do afogamento no gelo, sentindo fincadas a cada vez que lutava; ela, com a vida de volta (precária situação), terá essa outra baleia para cuidar, tão perigosa e assassina quanto os animais aquáticos, só que não tão facilmente adestrável.

Pena que o desfecho do filme não siga o mesmo nível do restante. O desenrolar das histórias paralelas ligadas ao boxeador, com sua irmã e o filho, não têm a mesma força do drama pessoal de Stéphanie. Sua falta de sorte na vida não explica os tantos dramas que seguirão, e, mesmo bom ator, Schoenaerts não é capaz de ter sozinho, na tela, a mesma intensidade que tem quando está ao lado de Marion. 

Quando Audiard, também roteirista, começa a falar da França dos “sans papiers” – sem papéis, os trabalhadores não formais – , ele nada acrescenta à história do canadense Craig Davidson, que originou o filme. O melodrama se instala, a história de amor aponta, e o filme derrapa: De rouille et d’os funciona melhor quando lida com o puro instinto, e não quando oferece compaixão. Afinal, foi uma baleia que decidiu seguir seu instinto em vez das ordens que deu origem a tudo.

O filme é melhor cru: talvez Alain, o lutador, só tenha ajudado Stéphanie para botar sua enorme força física a serviço de alguma coisa útil – e queria sexo em troca. Dito assim, Ferrugem e Osso faz mais sentido e soa ainda mais belo, porque apenas animal. O que não significa grosseria, longe disso. Nem no pior momento, no acidente com a baleia, Audiard não parte para apelação; filma tudo lateral, sem nenhuma brutalidade. Apenas uma baleia indo na má direção, não seguindo a sua domadora.

A mesma baleia voltará, tão e só baleia quanto foi na cena anterior, do acidente. Dessa vez, ela estará lá para ser acariciada e controlada, como esperado. Stéphanie dará carinho ao animal que lhe tirou as pernas. De volta ao que sempre foi, deixará de sentir pena de si mesma. Cena formidável.

Comentários (18)

Matheus Veiga | quinta-feira, 07 de Fevereiro de 2013 - 02:23

sem mencionar que o demetrius deu 8,5!

Gustavo Santos de Araújo | sábado, 29 de Junho de 2013 - 20:46

O filme mais injustiçado desse ano.... Original, Excepcional e Verossímel...Cotillard reafirmando excelentes escolhas e construindo uma carreira invejável com excelentes interpretações e sendo versátil em todos seus desempenhos(desde musicais, biografias até ação e drama)...Uma aula de interpretação e intensidade dramática.

Faça login para comentar.