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Febre, A

(The Fever, 2019)
7,4
Média
19 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A forma de um projeto de cinema

9,0

Há alguns filmes, muito notáveis no âmbito de um festival de cinema, que apontam para a construção de um projeto fílmico muito específico, desenvolvendo com algum rigor a sua forma audiovisual de modo a passar a impressão de algo que escapa ao intuitivo. Esse é o tipo de filme que, acredito, convencionou-se chamar de “acadêmico”. A Febre, parte da mostra competitiva de longas-metragens do XII Janela Internacional de Cinema do Recife seria, pelo que entendo, um desses filmes.

Eu não gosto de aplicar a filmes um adjetivo como “acadêmico”, parece-me pejorativo e pouco exato, calcado já antes numa determinada ideia do que implica ser acadêmico que me soa estranha; e acho que, felizmente, é um adjetivo que já caiu em desuso na crítica de cinema. Mas, depois de assistir a A Febre, peguei-me pensando nesse adjetivo e no modo como ele descrevia os filmes que se adequam a ele. Primeiramente, a grande oposição do acadêmico é o intuitivo, é dar ao seu filme alguma autonomia em relação ao projeto de cinema em que se insere (pensando aqui, lógico, em dois modos de falar do cinema de autor). Nesse sentido, a obra acadêmica de David Lean teria uma oposição na obra intuitiva de Jacques Tourneur, por exemplo. E, no âmbito do intuitivo, há um novo espaço para a criação livre, para a autonomia e para tudo aquilo que reafirma a figura de independência do grande autor.

O que está fora desse gesto artístico quase inconsciente seria, portanto, o cinema de uma outra ordem autoral. Em A Febre, dirigido por Maya Da-Rin, há uma precisão dos planos, um imperativo dos diálogos e uma duração meticulosa, dando a impressão de uma certeza formal que me fez pensar nessa distinção antiquada. O filme acompanha o personagem Justino (Regis Myrupu, premiado como Melhor Ator no Festival de Locarno), que trabalha na segurança de um porto em Manaus e vive com a filha (Rosa Peixoto), que foi aprovada para cursar Medicina na Universidade de Brasília.

A Febre tem essa maneira de se afirmar formalmente: é um filme lento, mas de uma temporalidade muito fundamental, que não permite se perder no tempo como outros do cinema de lentidão; é um filme que tem uma articulação ideológica bastante exata, é justo na escolha de como apresentar o que está determinado a apresentar e muito certo naquilo que opta por não encenar. A Febre me parece assim próximo de filmes como Arábia, no sentido de haver uma medida definida do que está em cena.

Quando olho para esses filmes, não consigo evitar pensar no lugar político pra que aquela distinção apontava, o lugar mesmo da liberdade autoral pela qual tantos foram celebrados (uma olhada para a bem montada seleção de clássicos do XII Janela nos dá uma indicação disso, em que um filme como SuperOutro é apresentado como um filme feito “com paixão”). A Febre compreende que uma liberdade desse tipo, autônoma, que distingue um corpo autoral na forma fílmica, não poderia conduzir os personagens e a narrativa com a mesma pertinência que o projeto de cinema que o filme constrói com muita apuração formal.

Ao encenar esse projeto rigoroso, o filme aguça a malha narrativa em que seus personagens se inserem. Logo, a escolha desses personagens, os seus gestos, o modo como interagem, como se movimentam pelo espaço parecem nos conduzir para um lugar estabelecido dentro do filme. Esse é o tecido de uma boa narrativa costura por meio de um agenciamento muito acertado de seus diversos elementos (o texto, a composição visual, a atuação).

A Febre, enfim, aparece não apenas como um projeto de cinema, mas como a incisiva afirmação desse projeto. Da-Rin, com sua direção, aponta para um caminho formal do cinema que muito me interessa: um cinema que se constitui numa rede estética e política e que se materializa na trama audiovisual primorosamente tecida pelos diversos elementos fílmicos que a constituem. Um projeto coletivo e dedicado de cinema.

Crítica da cobertura do XII Janela Internacional de Cinema do Recife

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