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Críticas

Cineplayers

Os dois lados da violência.

7,0
Existem inúmeras formas de mostrar estágios de violência na arte. Mais ou menos explícita, refém de simbolismos, com grafismos que a tornem discreta, de maneira metafórica ou por meio de códigos estéticos, a violência no cinema geralmente é gráfica e expositiva, vide filmes de gênero à moda antiga. Quando descrita, muitas vezes ela consegue ser ainda mais agoniante; quando simbólica, a mínima sugestão já será suficiente para impactar. 

Os diretores italianos Fabio Grassadonia e Antonio Piazza já têm certo manejo com o tema após sua bem sucedida estreia, o drama mafioso Salvo, que há 3 anos impressionou o Festival de Cannes com uma história de amor em meio a um sequestro. Já lá a dupla demonstrara uma delicadeza incomum para retratar camadas menos agudas da violência, passeando por suas lentes filtros ocres e de cores amadeiradas para retratar um relacionamento aprisionado e que eventualmente terminaria, com o crime à espreita e sob sua benção. Um desafio que é ampliado nesse novo filme.

Logo na abertura, Luna se esconde na ânsia de seguir Giuseppe. E Giuseppe se embrenha pela mata, símbolo do desconhecido e do perigo iminente. Em seu caminho, os jovens encontram exemplos do selvagem através dos inúmeros animais com que encontram: cachorro, coelho, esquilo, até o porto aumentar, e termos cavalo, onça, e claros sinais do crescimento dos atos abruptos que levam ao medo. Giuseppe percebe Luna, e dela rouba um beijo... um beijo que se queria. Da inocência extrema a estupefação da realidade: após um galope, Giuseppe desaparece. Luna teve a resposta que queria, e o sentimento que nutre pelo rapaz a fará incansável numa busca praticamente solitária. A partir daí, a violência se divide em duas: algo com viés mais poético, imaginativo, repleto de signos embebidos de contos, e uma mais expositiva, óbvia e que entra em cena a partir de uma hora, quebrando o clima de pesadelo do filme para uma realidade no mínimo estapafúrdia.

O filme de Grassadonia e Piazza é inspirado numa história real criminosa acontecida na Itália, envolvendo o sequestro de um adolescente pela máfia local, um desaparecimento que mobilizou o país durante muito tempo. Como o filme já trabalha com colheres de cheia de sonho e imaginação, a personagem Luna não poderia ter sido melhor criada ou representada. A adolescente vivida por Julia Jedlikowska é uma típica representante da idade, em conflito com os pais e com os próprios sonhos. O que é incomum em sua vida é a paixão por esse rapaz, que sai da zona da possibilidade para o desconhecido, e ela passa a não ter mais certeza de nada, transformando sua doçura em rebeldia e movendo o que deveria ser uma história de amor para um conto de mistério. A tão conhecida sensibilidade que os diretores já tinham demonstrado em sua estreia se intensifica aqui, e ela é necessária para além do desenho de Luna, mas principalmente para equilibrar uma trama que de maneira gradativa se encaminha para sair da zona sensível. Mas ainda manter esses elementos.

Qual é o grande calcanhar de Aquiles aqui? A vontade dos diretores de justamente equilibrar essas duas visões não apenas sobre a violência, como também sobre os lados de uma dita verdade. O esbarrão negativo vem de uma situação ambígua: ora bolas, a narrativa onírica escolhida para dar conta de Luna, dos seus sonhos e da trama que ela tateia no escuro é uma proposta não apenas imaginativa, irreal, mas super realizada em sua proposta, ainda que mesmo assim violenta. A situação desanda porque a dupla resolve a partir de uma hora de filme focar também na situação de Giuseppe, que é completamente diferente na abordagem da de Luna, sendo que tudo naquela narrativa pode ser igualmente fruto de imaginação, logo há uma situação de conflito estrutural claro no filme. Além disso, o filme cria a partir da narrativa de Giuseppe uma forma direta de lidar com a violência que parece muito descabida a partir daquele momento tão avançado no filme. Independente da beleza estética que esse binômio de visões possa ampliar, o filme caminha para uma bipolaridade estética nada orgânica.

Mas como é dito acima, sobra talento aos rapazes italianos para criar planos, sonoriza-los e montá-los. Vários momentos de impacto são produzidos, como o grito de liberdade da mudança de visual de Luna, as sequências iniciais que acompanham os jovens pela floresta, a comunicação de Luna com sua melhor amiga pelas janelas, mas talvez poucas coisas sejam mais impressionantes no filme que a cena do galão que deseja gordura no rio que banha os personagens. Silenciosa, muito triste e quase desesperadora, é nesse momento que parecemos relaxar para os problemas do filme para nos entregar a tantas passagens de construção imagética tão exemplares. Ainda que com sua falta de regularidade, cenas como essa, tão simples quanto poderosas, revelam o tanto de talento que a Itália já tem em mãos.

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