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História de Família, Uma

(Family Romance, LLC, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Simbiose entre o real e o artificial

9,0

Na primeira sequência, já fica muito claro que o digital será usado como exercício narrativo no novo filme de Werner Herzog. Um reencontro entre pai e filha que não se veem há 10 anos, quase uma instituição do melodrama, com direito a violino na trilha sonora, tem seu exagero exasperado pela câmera do formato, que transforma todas as possibilidades estéticas. Rapidamente temos consciência de que o mestre veterano está ampliando sua discussão no cinema para as infinitas possibilidades que o digital traria, mas ele faz bem mais do que inserir em contexto narrativo o visual exibido em Family Romance, Ltda — ele escreveu seu roteiro para que essa escolha fosse justificada no roteiro.

Passada a primeira cena, o tombo: a Family Romance é uma empresa que, trocando em miúdos, mente. Dissimula. Interpreta mentiras como verdades. Logo, o simulacro de realidade que suas intenções pretendem são denunciados pelo uso da câmera digital, que retira toda a textura típica cinematográfica e insere na imagem produzida um olhar artificial ao cinema como o conhecemos. Como o trabalho da empresa-título do filme é reenxergar a realidade, rememorar a "vida real" (lembrando que não faz parte de um projeto documental, e sim uma ficção, ou seja, nada ali é real mesmo que queira ser), algumas bases do cinema são regurgitadas para criar uma miríade de sensações nessa missão de reconstruir a forma como se contam histórias no audiovisual.

Herzog, com a captação de imagens que está sendo normatizada no documentário, cria uma espécie de mocumentário ficcional, ressignificando assim tanto as ideias do documentário quanto as da ficção, e artificializando algo que o cinema de hoje está tentando deixar de seguir, ao definir de maneira crua a substância da modernidade, que seria a reprodução fiel da realidade. É como se o diretor chegasse agora e dissesse, "O cinema é artificial!", e conseguisse desenvolver — com inúmeros plot twists um elogio à artificialidade.

Nada na tela é real... nunca! Então, por que fingir ser? Pensando dessa forma, o cineasta radicaliza na proposta e exacerba seu resultado, com cenas inesquecíveis como a da foto tirada na rua ou a da vitória na loteria, onde Herzog se permite absolutamente tudo, até... emocionar de verdade. Um artesão de mão cheia quando está em plena forma, e o que vemos aqui é um dos seus melhores momentos. Uma investigação nada formal a respeito das ferramentas narrativas e tecnológicas a serviço da arte, utilizadas de maneira a encantar e debochar. É como se toda a estrutura estivesse a pretexto do fora de campo, mas isso é só uma breve impressão; com funcionalidade, o roteiro do filme encampa debates reais sobre a necessidade de manutenção do previamente estabelecido, aquele que não ousa a mudança e só reorganiza o status quo.

A persistência do roteiro em um conflito particular do protagonista soa como um excesso desnecessário vez por outra, mas possibilita uma cena final de muito impacto, uma eterna roda viva de disfuncionalidade. Senhor das imagens e das palavras na produção, Werner Herzog se ensaia como um cineasta cheio de vigor e personalidade jovem, que percebe o futuro à sua volta e não trata apenas de louvá-lo, mas principalmente de problematizá-lo. Com o campo repleto de novidades a partir dessa modernização das imagens cinematográficas, Herzog parece dos raros cineastas a não apenas provocar com o digital, como o principal: colocar a nova tecnologia em debate a partir do que tem feito seus companheiros de profissão. Da parte dele, o serviço foi realizado com destreza.

Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo

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