Belo e prático filme argentino, de fazer inveja ao cinema brasileiro.
No dia do aniversário da avó, parentada reunida, a matriarca comete um erro: conclama toda a família que mora em Buenos Aires a ir ao casamento da neta em Currientes, o estado (província) vizinho ao Brasil, um dos mais pobres do país e a mais de mil quilômetros de distância. Se por si o empreendimento já seria arriscado, imagine todos os parentes juntos num caminhão velho com um trailer acoplado, reunindo cunhados, irmãos, primos, cachorros e a falta de dinheiro num mesmo espaço, em condições infames e por dias a fio.
O pesadelo que se tem a seguir é Família Rodante, segundo excelente filme do argentino Pablo Trapero lançado no Brasil que, como sua brilhante estréia, O Outro Lado da Lei, escreveu e dirigiu mais um bom exemplar da “buena onda”.
Como parece ser de praxe, o resultado é de matar de inveja os brasileiros, pois o cinema argentino caminha muito na frente do tupiniquim. Trapero, nesse filme simples e eficiente, consegue mostrar de maneira implacável a alma latino-americana em pouco mais de hora e meia de duração usando um roteiro enxuto e com poucos recursos. O talento, no entanto, lhe sobra.
Estão lá a falsa sensação de que a família está unida, as implicâncias entre os membros, a atração que o cunhado sente pela irmã da mulher, a arrogância do motorista machista (que estava com a carteira vencida), o caminhão que quebra, a falta de postos de gasolina decentes, a pobreza do entorno, a sexualidade dos adolescentes explodindo (o rapaz acaba ficando com a prima e mais que ficando com a amiga dela) e um longo etc.
O que permeia todo o filme é uma sufocante sensação do dever de manter a família unida (que faz todos abrirem mão de suas individualidades para se submeter àquilo) e a sempre ridícula e forçada sensação de alegria que é necessário estar permanentemente no ar. Trapero irá com sua câmera mostrar o quão artificiais são essas convenções, assim como sua colega de movimento Lucrecia Martel fez tão bem no duo existencial formado por O Pântano e A Menina Santa.
Mas Trapero não opera no mesmo diapasão filosófico de Martel. É mais prático. Mostra os corpos roliços e escancarados, suores, dos familiares como metáfora de sua disformidade. Estradas esburacadas e enlameadas são o ambiente ideal para o desenvolvimento da história porque não haveria melhor cenário para aqueles pequenos dramas tão mesquinhos e amiúdes.
Família Rodante é o terceiro filme de Trapero depois do impactante El Bonaerense, que investigou a gênese da corrupção da polícia de Buenos Aires e a conseqüente explosão da violência na metrópole (infelizmente não foi lançado no Brasil sua estréia, Mundo Grua). Em O Outro Lado da Lei seguíamos a trajetória de um ex-agricultor desempregado forçado pela crise econômica a ser policial na cidade grande. Ao se deparar com as generosas ofertas do tráfico de drogas e a falta de estrutura do estado em organizar um polícia decente (estamos falando da Argentina...), lentamente o honesto e incorruptível caipira se transforma em mais um cínico.
Em Família Rodante, o tema poderia ser considerado “menos nobre”, pois se restringe a uma família de classe média baixa numa viagem a la Pequena Miss Sunshine (o filme argentino é anterior e os filmes, apesar da semelhante, pouco têm em comum). Mas no final a sensação é a mesma: uma sociedade corrupta gera seres não imunes a ela. E Pablo Trapero mostra-se como um de seus melhores e mais incisivos cronistas.
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