Um grande artista registrando com grande delicadeza um momento único tanto de sua vida quanto a de seu país.
O dramaturgo, ator, diretor de teatro e cineasta canadense Robert Lepage é amado pelas suas grandes obras ambiciosas, pelo humor ferino, pela visão ao mesmo tempo implacável e terna em que vê a civilização hoje. Estranha em sua obra esse pequeno e íntimo A Face Oculta da Lua, adaptado pelo próprio a partir de um monólogo por ele mesmo interpretado no palco. É tido por muitos como um fracasso. Pode ser. Ele nunca conseguiu mesmo nas telas o sucesso que adquiriu nos palcos. Fez uma série de filmes médios, de qualidade evidente, mas nenhum deles uma grande obra, diferente, por exemplo, da sua Os sete afluentes do rio Ota, peça de seis horas de duração encenada com sucesso em quase todos os centros culturais do mundo.
O filme é bem estranho. Conta a história de Philippe, um estudante de doutorado em “artes da ciência”. Ele se dedica a pesquisar a influência que as grandes descobertas científicas exercem na cultura popular, em especial a conquista da Lua. Segundo sua tese, a corrida espacial nada mais foi do que um exercício de narcisismo do homem que, arrogante e prepotente, pensa ser a mais evoluída criatura de todo o sistema solar.
O doutorado é recusado e, junto com a morte da mãe, as dívidas que se acumulam e o emprego ruim de telemarketing vendendo assinaturas do jornal Le Soleil, levam Philippe a uma espécie de buraco existencial que o leva a rever sua vida, desde a operação de um tumor no cérebro quando adolescente, a infância sem o pai, até a relação difícil com o irmão homossexual, um jornalista de sucesso e novo-rico apresentador da meteorologia na TV - um duplo, na verdade.
São 105 minutos difíceis e desconfortáveis, mas regados pela bela música de Benoît Jutras e canções do Led Zeppelin e Laurie Anderson. Lepage intermeia a ação, frágil, com longos discursos das personagens (que nem sempre funcionam no cinema) e com vários detalhes, filmados sem pressa, além da confecção de um bizarro vídeo experimental que o estudante faz para ser transformado em linguagem binária e enviado para os extraterrestres que se comunicam com a Terra.
A impressão que temos ao final de A Face Oculta da Lua realmente tem o narcisismo como tema, mas o narcisismo de Robert Lepage em primeiro plano. Mas há belos momentos de profunda melancolia, muito bem filmados, uma direção de arte esperta, inteligente e funcional, aliada a efeitos especiais que tornam o filme engraçado e meditativo.
Afinal, Philippe é um homem apegado à mãe e, depois da trágica morte dela, fica perdido, ainda mais que passou os últimos anos ao seu lado cuidando dela. Frágil, tolo, com a cabeça literalmente nas nuvens, Philippe só desperta pena nos familiares – no público também. Mas é sua capacidade para a mudança e sua lenta percepção da vida, bem particular, que o farão especial na sua parte da trama.
O ano era 2003. O Canadá francês triunfara em Cannes com As Invasões Bárbaras, com os prêmios de roteiro e atriz, filme que venceria também o Oscar de melhor filme estrangeiro, o César (Oscar francês) e o Génie (o Oscar do Canadá). O cinema canadense de língua francesa também conhecia, no mesmo ano, alguns de seus mais expressivos sucessos comerciais, como A Grande Sedução e C.R.A.Z.Y.. E Robert Lepage propôs esse pequeno e íntimo La Face Cachée de la Lune. Fracassou nas bilheterias e na crítica.
Lepage voltou às origens: a primeira vez que tomou LSD e fumou maconha – escutando escondidos os discos da mãe enquanto se masturbava com a ajuda das indefectíveis revistas pornográficas –, além das desilusões amorosas e profissionais. Pode parecer pouco e pequeno, na verdade é, mas trata-se de um grande artista registrando com grande delicadeza um momento único tanto de sua vida quanto a de seu país.
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